Quando transpus a porta para o outro
lado, constatei que tinha acabado de entrar na biblioteca. As estantes de
madeira, pintadas em cores claras, confundiam-se com as paredes, que pareciam
forradas num papel de padrões coloridos e geométricos, devido às cores diversas
das lombadas dos livros, dispostos de uma forma arrumada e limpa, ao correr das
prateleiras. Suspenso, sobre a minha cabeça, como uma aranha transparente, um
lustre de cristal sustentava um anel de pequenos sois cintilantes. Mais ao
fundo, sobre uma robusta mesa de leitura, com um tampo polido em tons de ébano
e pernas arqueadas como as de um fauno, repousavam meia dúzia de livros, alguns
papeis dispersos, um telefone e um cinzeiro em vidro, vazio e limpo. Ao
contrário do salão nobre, ali sentia-se que o mundo preferia manter o enigma das
coisas vivas. Lembrei-me que tinha lido algures, que os livros eternizam a vida
dentro deles, porque conservam um bocadinho de cada uma das almas que os lê. Não
sei se seria assim, mas a verdade é que, naquela sala, havia algo de muito
forte a impor a sua presença. Também não sei se essa presença vinha dos livros,
ou dos objetos, ou da própria casa e da história que ela contava, ou, até, se
eu me estava a deixar levar por alguma fantasia momentânea, própria dos
desatinos criadores. O que sei é que, aquele espaço, com ar arrumado e luminoso,
se teria de ser dominado por alguma alma, não o seria com certeza pela sinistra
viúva. E foi quando, subitamente, senti um leve suspirar nas minhas costas, o
que me provocou um calafrio, mais pelo efeito de surpresa do que pelo susto.
Depois, a minha racionalidade voltou à tona e levou-me a pensar que se tratava
de minha mãe.
“Então? Já acordaste?” Reagi.”
“Se já acordei? Estou acordada desde há
tanto tempo que nem o dia se lembrava ainda de nascer.”
Reconheci, de imediato, que não era
quem eu pensava. A voz era feminina, doce como a de minha mãe, mas mais
timbrada e resoluta. E quando me virei, lá estava aquela figura, esguia e
sensual, com a perna esquerda a cruzar sobre a direita, o corpo ligeiramente
reclinado, e com ambas as mãos apoiadas na ombreira da porta, onde pousava o
rosto e escondia o olhar, por baixo de uns cabelos longos e ondulados. Durante
alguns momentos, aquelas duas órbitras de sombra fulminaram-me, emanando um
enigmático encantamento, o que me roubou as palavras e me fez paralisar. Então,
após desfazer a posse, dirigiu-se a mim com dois passos largos, e a mão direita
em riste para me cumprimentar.
“Olá. Sou a Joana. Joana Aragão, a
neta...”
“…E tu? Deves ser o Africano. Ou o menino
da mamã, pelo que me consta.” Arriscou, com um esgar sorridente, enquanto
apertávamos as mãos. Senti-lhe a pele tépida e suave, e apeteceu-me prolongar o
cumprimento, mantendo-lhe a mão apertada durante algum tempo, o que ela não
recusou.
“Francisco Boaventura, o Africano, tal
como dizes.” Assenti. “E a ti, como te posso chamar? Joana? Ou Joaninha, a
menina da vovó?”
“Podes-me tratar por Janis, como
todos os meus amigos. E estou muito longe de ser a menina da avó, essa beata
velha, posso garantir.” Respondeu com um semblante mais sério, retirando a mão
de dentro da minha.
“Não duvido.” Assegurei. “E será que
ouvi bem? Janis?..de Janis Joplin?”
“Em cheio, Africano espertinho.
Parece que afinal sempre conheces o mundo, para além da selva.” Respondeu,
irónica.
Foi então que deu meia volta e me
virou as costas, para se afastar num andar ostensivo e provocador. Por baixo de
uns jeans boca-de-sino, muito justos nas ancas, e de uma blusa larga, em tons
de marrom, meio transparente, toda a voluptuosidade daquele corpo de mulher, lânguido
e esguio, se insinuou perante o meu estupidificado olhar de macho, sujeito à
tentação. Enquanto caminhava até á mesa de leitura, cada passo que dava realçava-lhe
os contornos femininos, como se fosse um bailado de formas, a desenvolver-se desde
a linha interior das coxas, cruzando-se com a curva das nádegas, até explodir
nos confins do meu cérebro. Assim que se sentou, naquela poltrona de couro
pardacento, lançou-me novamente o seu olhar, intenso e penetrante, como se me
estivesse a ver por dentro, como se aquele olhar fosse um bando de pássaros
negros a pousar sobre uma árvore nua, exposta a uma tempestade.
Então, puxou uma das gavetas, pegou
num maço Negritas, já aberto, de onde fez deslizar um cigarro, que lançou nos
lábios com um gesto rápido e preciso. Fez todos estes gestos sem descolar os
seus olhos dos meus, sempre com um sorriso malicioso, tendo a noção exacta dos
efeitos que a sua atitude provocatória me estava a causar. Eu sabia
perfeitamente que ela me estava a testar, como só as mulheres sabem fazer, e
mantinha-me imperturbável, a tentar demonstrar uma certa indiferença. Mas a
indiferença é sempre uma estratégia de risco, que pode passar de mel a fel e
vice-versa, e que se deve abandonar na altura certa. Foi quando meti a mão ao
bolso, para pegar no isqueiro e lhe oferecer lume. Só que, quando ela se
debruçou para se aproximar do isqueiro, e levantou a mão esquerda para puxar a
farta e escura cabeleira para trás da nuca, o movimento do braço fez com que o largo
decote da blusa se abrisse um pouco mais, o suficiente para lhe revelar o
contorno dos seios, cândidos e roliços, como dois montículos de neve, coroados
com uma auréola de bronze. Se até ali tinha sido um tormento manter o decoro,
agora passava a ser uma tortura. Por momentos, apeteceu-me enlouquecer, meter a
mão pelo decote e acariciar, com a ponta dos dedos, aqueles dois carocinhos de
carne, mordiscá-los até que eles se retesassem de prazer e me suplicassem por
mais. Ocorreu-me que a loucura é como a corda de um alpinista; se a usarmos
corremos o risco cair, e se não tivermos a audácia de a usar, também nunca
chegaremos ao cimo da montanha. E a verdade é que não tive essa audácia, e
fiquei-me nas cordas. Para disfarçar o embaraço, desviei o olhar para a parede,
por detrás da poltrona, onde estava pendurado um quadro da já referida Janis
Joplin. Joana, ou melhor Janis, sem largar o seu sorriso malandro, chegou a
ponta do cigarro ao lume do isqueiro, recostou-se para trás, traçou as longas pernas,
firmes e torneadas, e lançou duas baforadas na minha direcção.
“Fumas?”
Ainda debaixo da excitação que
aqueles últimos minutos me provocaram, retomei atrapalhadamente a compostura,
como se nada se tivesse passado, e respondi:
“Depende. Não em recintos fechados.”
“Mas que menino atinado me saíste!”
Ironizou.
“Sabes, desde muito pequena que adoro
Janis Joplin. É o meu ídolo. Uma deusa, que me acompanha e acompanhará enquanto
eu pertencer a este malvado mundo dos vivos.”
“Ter ídolos, vivos ou mortos, pode não ser mau
de todo, desde que eles se mantenham no céu e nós na terra.” Argumentei. “Mas,
mesmo vindo da selva, consigo ver que não és do género de resignar, tal como
fez o teu ídolo. É que de resignações está o inferno cheio, e pelo que pude
constatar, durante o dia de hoje, desse mal nem esta miserável terra se livra.”
“Obrigado pelo elogio. No que me diz
respeito, podes ficar tranquilo, gosto demasiado da vida para a deitar cano
abaixo. No entanto, reconheço que tens alguma razão, em relação à Janis. Julgo
que nunca se saberá se o fez por excesso de lucidez ou de loucura, e a loucura
leva sempre á resignação. Para se ser idolatrado é preciso ser louco, e isso
tem os seus custos.”
“Provavelmente.” Admiti.
“Relativamente ao Tozé, tenho as minhas
sérias dúvidas, porque o conhecia demasiado bem”
Percebi que se estava a referir ao
António José, o jovem enforcado, daquele dia.
“Não era tolo nem sábio, nem louco
nem esclarecido, era o mais comum dos mortais, como todos nós somos. Eu nunca
compreendi essa ideia repentina dele de querer ser acólito, e de casar pela
igreja, mas penso que viu nisso a única forma de se aproximar da filha do
sacristão; a Ana Maria, a noiva, ou a Mata
Noivos, como eu lhe costumo chamar, e por quem ele se apaixonou. Enfim, tinha
os seus sonhos, os seus anseios e angústias também, mas era isso que o fazia
andar. Duvido muito…ou por outra, não duvido, tenho a certeza que nada o
levaria a cometer tamanha loucura.”
“Então, achas que ele não se suicidou?”
Indaguei.
“Não sei…não sei mas vou descobrir.
Ninguém me tira da cabeça que essa falsa santinha, que essa fingida da noiva,
não tenha nada a ver com isto.”
Entretanto, após uma curta pausa, Janis
descruzou as pernas de cima da mesa e torceu o tronco, o suficiente para lançar
o olhar na direcção da janela.
“ Estás a ver aquele cruzeiro lá
fora?”
“Sim, estou. Passei por lá há pouco,
antes de entrar nesta casa.”
“E viste a coroa de flores?”
“Claro que vi. Para além de uma
lamparina e de umas marcas com algarismos, o que achei estranho e algo
sinistro.”
“Pois põe sinistro nisso. Foi ali que
o primeiro morreu.”
“O primeiro?” Suspirei, incrédulo.
“Sim, o primeiro namorado da Ana
Maria. Nas últimas grandes cheias, apareceu ali com um pé preso na argola de
ferro onde estão penduradas as flores. Foi encontrado mais podre que uma
abóbora, depois do nível das águas ter baixado e de toda a vila o ter
procurado, durante dias a fio. Na altura, toda a gente afirmou que se tinha
matado e foi assim que o caso foi encerrado. Nem a uma única badalada de sino,
aquela alma teve direito.”
“De facto, não deixa de ser intrigante!”
Observei.
“Como vês, já existem antecedentes e
tenho todas as razões e mais algumas para suspeitar dessa nossa queridinha Mata Noivos. Há muita coisa ainda por
explicar.”
Declarou, com um ar circunspecto, expelindo
uma baforada de raiva, enquanto esmagava a beata do cigarro no fundo do
cinzeiro.
“E tu, meu menino da mamã, tem
cuidado com estas beatas cá da terra, sejam velhas ou novas. São piores que o
mosquito, mordem pela surra e quando dás por ela já estás contaminado e sem
salvação. Principalmente, não vás na cantiga da velha beata aqui da casa, nem
tu nem a tua mãe. Ou então, daqui a pouco não fazem outra coisa senão andar a
lavar o rabinho do padre Clementino com água-de-colónia.”
“Não! Claro que não.” Balbuciei,
demasiado crédulo, só porque não me ocorreu mais nada para dizer.
“Mas já vi que não morres de amores
pela tua avó.”
“Quem vai morrer de amores por uma
víbora dessas? Ela no seu cantinho e eu no meu, e é assim que deve ser.”
Reparei que não pretendia falar sobre
o assunto. Mesmo assim, ainda acrescentou:
“Mas não te preocupes, são assuntos
nossos. Apesar de tudo, para além de falar pelo cotovelos, não deixa de ter algumas
coisas boas. Se tens intenções de continuar por aqui, e levares uma vida
tranquila, só tens de cumprir estes três mandamentos: Não seres comunista, ires
á missa todos os Domingos e cortares esse cabelo.” Rematou, lançando uma
gargalhada.
Então, levantou-se de repente e
chegou-se a mim, colocando os seus olhos de âmbar à altura dos meus. A sua respiração
entrou por mim como se fosse a minha, senti o ardume do seu corpo a queimar-me
por dentro e todo eu estremeci, não conseguindo disfarçar a excitação,
novamente.
“Que achas do amor livre?” Sussurrou,
apanhando-me desprevenido, fazendo-me recuar até assentar as nádegas no bordo da
mesa, quase ao ponto de me desequilibrar.
“Todo o amor é livre. Que eu saiba
ninguém pode proibir ninguém de amar.” Consegui retorquir, mesmo assim.
“Não estou a falar desse amor. Não
falo de romance. Refiro-me ao amor carnal, ao sexo. Imagino que saibas o que
isso é.”
Insistiu, enquanto me empurrava para
trás com os dedos da mão direita enfiados entre os botões da minha camisa,
arrepanhando-me os cabelos do peito e encaixando-se em mim. Os jeans, demasiado
justos, realçavam-lhe a fenda do sexo, fazendo-me sentir como se estivesse a
sobrevoar um vale entre duas montanhas. Ao aperceber-se do chumaço entre as minhas
pernas, aquele animal bravio, fez questão de me enlouquecer ainda mais, pressionando
a zona da púbis contra o volume do meu pénis entesoado. Eu termia, não de frio
mas de raiva e desespero. Raiva por saber que ela se estava a divertir á minha
custa, sem sequer me ter convidado, e que tudo não passava de um engodo, de um
ardil feminino, com o único propósito de me levar ao limite. Desespero, por não
poder entrar naquele jogo; porque não me saía da cabeça que a minha mãe e a
velha estavam ali ao lado, e porque tinha a noção de que, assim que tivesse o
primeiro gesto de audácia, assim que tivesse a coragem de fraquejar, tudo se
esfumaria. Porque as mulheres são mesmo assim; picam o boi, e quando o boi se
vira para lhes fazer frente, em vez de o pegar fogem com o rabinho entre
pernas. Fazendo força com as mãos atrás das costas, arrastei o rabo pela mesa e
afastei-me ligeiramente.
“Acho que… cada coisa no seu
lugar…tudo no seu devido tempo.” Gaguejei.
“És mesmo atinadinho. Mas gostei de
ti. Um dia destes vou descobrir esse teu lado selvagem.” Segredou-me, com os
seus lábios, húmidos e redondos, quase a roçarem os meus.
De seguida, sem que eu tivesse tempo
de reagir, recuou e saiu porta fora, deixando-me estatelado em cima da mesa, de
costas que nem uma barata tonta.
Ainda consegui pigarrear uma resposta,
mas já nem as paredes me ouviram.
“Não duvido, menina Janis...”
Quando me recompus, depois de me ter
tentado levantar sem deitar nada ao chão, já a luz do crepúsculo deslizava,
silenciosa, pela abóboda negra da noite. Durante largos momentos, não consegui
raciocinar devidamente sobre o que tinha acontecido naquela sala. Aliás, nem
sobre o que tinha acontecido ali, nem naquele casarão, nem desde que chegáramos
aquela povoação. A verdade é que, para uma terra pequena e pacata, como minha
mãe tanto gostava de apregoar, já me parecia haver demasiada emoção. Não tanto
por causa daquela cena teatral de Janis, e pela sua atitude de gata assanhada,
mas mais por tudo aquilo que ela disse. Se, por um lado, Janis se revelou um
ser destravado, muito para além do seu tempo, por outro, pareceu-me alguém com
uma grande maturidade e muito firme nas suas ideias, e foi isso o que mais me
fascinou. Não porque a imagem daquele corpo, quente e libidinoso, não deixasse
de me espicaçar o cérebro, ou porque eu menosprezasse os assuntos da carne,
relativamente aos do espírito. Tal como meu pai, também eu começava a apreciar,
com todo o entusiasmo, os atributos femininos, e a aprender que, muitas vezes, não
se pode ir ao pote com demasiada sofreguidão. Por isso sentia-me bem comigo
mesmo, por saber que, se eu a Janis tivéssemos ido mais além, seria com certeza
o fim sem sequer ter havido princípio. E como as ânsias do corpo são sempre
mais fáceis de solucionar do que todas as outras, haveria que dar tempo ao
tempo, porque novas oportunidades surgiriam.
A chuva tinha parado, deixando apenas
umas finas agulhas de água a escorrer pelas vidraças. Espreitei por entre os
pesados cortinados de veludo, em tons de pérola. Lá fora, no lado oposto da
praça, vislumbrava-se a sombra de um candeeiro de parede, a despejar um pálido
e tímido cone de luz. O cruzeiro de pedra dissimulava-se na penumbra da noite,
com as suas negras marcas dos anos. A lamparina tinha soçobrado perante a
chuva, tal como a coroa de flores perante a mágoa. Agora, depois do que Janis
me contara, podia compreender melhor o significado daqueles sinais. O cruzeiro
era a memória viva das trágicas inundações com que o tempo se habituara a
brindar aquela terra, e nada melhor do que uma cruz para simbolizar a
fatalidade. A última grande cheia tinha sido em 1975, tinham-se passado dois
anos. O nível das águas quase que submergira a totalidade do cruzeiro, conforme
indicava aquela linha preta, gravada na pedra. Calculei, pela sua altura, que
toda a zona baixa de Valdágua teria ficado inundada, que todas as casas
periféricas da praça teriam ficado submersas e que só o primeiro andar do
casarão, deveria ter escapado á devastação das águas. De facto, não deve ter
sido por acaso que o criador deste mundo escolheu, como sítio para viver, o céu
e não a terra. É que o mal quando chega vem sempre por baixo, como um bicho
rastejante.
Olhei mais uma vez para o cruzeiro e
pensei que não deixava de ser irónico alguém morrer amarrado a uma cruz, tal
como morreu Cristo, para, de seguida, ser renegado. Lembrei-me, também, daquele
corpo acabado de descer á terra fria, mas que não era mais fria do que as terras
abençoadas. Duas almas párias, ambas unidas pelo amor que tiveram á mesma
mulher, um amor que, provavelmente, lhes traçou o destino.
Naquele dia em que, eu e minha mãe
chegámos, os sinos não tocaram. Deus refugiara-se num profundo silêncio. Pensei
que o silêncio é um recurso inesgotável, que nunca deixa de marcar comparência
perante os mais necessitados e que poderia muito bem ser a última bênção das
almas resignadas.