quinta-feira, 24 de setembro de 2009

QUEDAS DE ÁGUA DE KALANDULA

Kalandula fica a cerca de 80 kms a norte de Malange. Para lá se chegar, partindo de N`Dalatando, tem de se percorrer aproximadamente 250 kms, sendo setenta em terra batida, cheia de buracos, pois a estrada ainda está em obras a seguir ao Cacuso.
Vale a pena o esforço e o cansaço. As quedas de água são imponentes e impressionam, sentindo-se de perto a natureza com toda a sua força e pujança.

Infelizmente, não existem condições que permitam disfrutar mais e melhor desta zona tão espectacular e com tanto potencial. Seria interessante criar acessos em toda a envolvente das quedas e desenvolver algumas actividades ligadas ao turismo e mesmo aos desportos radicais.
Em tempos, houve uma pousada na encosta do vale a jusante das quedas, mas agora encontra-se degradada e abandonada no meio do mato.




terça-feira, 22 de setembro de 2009

MENINO DI MUSSEQUE

Por estas bandas, terra de musseques feitos de pó e de chuva, já muito longe dum passado colonialista onde as referências portuguesas se vão perdendo, as crianças tratam o branco por “amigo”, julgando que é cubano, sem perceber que o facto de ser cubano, brasileiro ou português não significa, forçosamente, ter uma cor diferente da dele.
Quando, há dias atrás, me desloquei ao interior dum musseque, abeirou-se de mim um miúdo que me disse, assim sem mais nem menos, “ eh amigo você é bonito”, deixando-me, no mínimo, perplexo e desconcertado. Podia ter dito que eu tinha uns ténis giros ou que os meus óculos escuros, com que ele ambiciona um dia zungar(*) nas ruas do centro da cidade, eram fixes. Mas não foi assim ao contrário do que seria de esperar. O que terá levado uma criança de dez anos a elogiar assim uma pessoa totalmente desconhecida, já de meia-idade, sem qualquer razão aparente? Não sei se sou bonito ou feio nem acho que isso seja relevante aqui. Beleza não tem medida e nem depende de alturas e larguras. Beleza não é cor de pele nem sinal ao canto da boca. Beleza é, talvez, a forma como cada um enfrenta os seus sonhos.
Os musseques são os bairros periféricos da cidade, feitos com pequenas casas constituídas por quatro paredes de adobe e um telhado de chapas de zinco. Proliferaram no tempo da guerra civil com a fuga das gentes do interior. Trocaram as agruras dum isolamento sujeito aos caprichos duma guerrilha ideológica sem sentido pelo refúgio e pelo aconchego duma vida miserável mas mais segura. Agora, continuam a estender-se, irracionalmente, pelos fundos dos vales e encostas das montanhas circundantes, ao arrepio de qualquer critério urbano e ao sabor duma total precaridade humana.
Os meninos dos musseques vivem paredes meias com as cabras, os porcos e os cães raivosos. Mergulham nas águas contaminadas indiferentes às bactérias e aos parasitas que lhes ferram o sangue e os levam precocemente. Brincam descalços envoltos no pó da terra sépia e no meio de carcaças metálicas, muitas delas resíduos de guerra. Saltam imprudentes por entre pontas de metal aguçadas, ávidas por lhes rasgar a carne alimentada de fuba. Constroiem habilidosos carrinhos com arames e latas de refrigerante que depois comandam orgulhosamente com baraços desbravando caminho através duma selva plantada de detritos. Tornam-se mestres na arte de inventar com restos feitos de nada, acalentando o sonho de alcançar um mundo com outras cores.
Quando este miúdo se aproximou de mim e pronunciou aquelas palavras, estava, apenas, a ver o sinal de um mundo diferente e que ele acha mais belo do que o dele. Um mundo de que ele apenas houve falar e que, de vez enquanto, vê na televisão. Um mundo onde as crianças vão à escola de manhã e à tarde correm na relva, andam de bicicleta, jogam com consolas portáteis, brincam com carrinhos telecomandados e tem parques infantis com escorregas e baloiços. Um mundo onde os pais põem os filhos em escolas de futebol, oferecem “puppys” nos dias de aniversário e as suas casas têm quartos com janelas e paredes pintadas com cores diversas.
Um dia destes, quando encontrar novamente este menino, ou outro qualquer, vou ter de lhe dizer que a beleza não está em mim nem no meu mundo. Dir-lhe-ei, sim, que a verdadeira beleza está nele, na coragem com que brinca todos os dias e no brilho de um sorriso com que ilumina este seu mundo tão sombrio.
(*) Zungar significa passear




domingo, 13 de setembro de 2009

D`ASSOMADA a N`DALATANDO (2)

Já vivi em quatro países deste mundo e passei por mais uns tantos, o que não significa nada numa era tão global e que, cada vez mais, gera seres desenraizados e solitários. A verdade é que tudo isto me deu uma sensibilidade especial o que me fez adquirir uma percepção própria em relação às incongruências do Criador.
Se me fosse permitido e se tivesse de adjectivar este nosso Criador, a primeira palavra que me ocorreriam seria “preguiça” e que, para além disto, o mundo foi criado sobre a mais completa indolência. E se, me for também concedida tal imodéstia e tamanha presunção, passarei a expor a minha teoria sobre a criação deste mundo.
Deus, como toda a gente sabe era filho único, e por isso bastante mimado e cheio de birras. Seu pai, desesperado, sem saber o que fazer para lhe ocupar o tempo, naquele tempo onde não havia creches nem amas, resolveu dar-lhe uma tarefa para o entreter. Sentou-o no meio do jardim, colocou-lhe á frente, um monte de terra, um balde, uma pá e uns quantos utensílios que achou adequados e disse-lhe: “fica aí e entretêm-te a criar o Mundo que eu tenho mais que fazer”.
Ora, como é óbvio, Deus marimbou-se para aquilo tudo. Espremeu umas tantas migalhas daqueles detritos que deixou cair por entre os dedos e deu origem a Cabo Verde. Com o pé, talvez o esquerdo, ajeitou uma porção daquela nojenta massa térrea e lá conseguiu configurar este país a que resolvemos chamar Portugal. Com tudo o resto, ainda se atreveu dar umas pazadas completamente aleatórias e desajeitadas, donde surgiu África e, no caso desta história, mais concretamente Angola. Depois, num acto de profundo desdém e desinteresse, mijou naquilo tudo, deixando-nos num estado de total abandono, do qual nunca mais quis saber, refastelando-se eternamente no seu altar de divindade.
Não quero, com estas considerações teológicas, desculpar nem ilibar seja o que for relativamente à desgraça humana. Até porque não sou muito dado a questões metafísicas nem muito menos a questões de fé, que nos permitem levar uma vida despreocupada e isenta. Desejo, apenas, chamar a atenção de que existem mundos muito menos protegidos e, talvez, desgraçadamente esquecidos.
Ainda consigo vislumbrar em mim o sentimento de quando pisei a primeira vez a Ilha do Sal em Cabo Verde e, depois, a Cidade da Praia. Nunca tinha estado em terras africanas e o calor que se apoderou de mim, na altura, foi inesquecível. Até essa altura, da minha vida, nunca me tinha sentido tão só e ao mesmo tempo tão próximo de tudo quanto é a nossa origem. O cheiro diferente, o suspiro da terra, a paisagem cinzenta e pobre mas ao mesmo tempo forte, quente e intrínseca á espécie humana, própria dum povo em que nada lhes foi concedido. Apenas mar e terra a erguer-se a Deus num acto de penitência e resignação.
Quando se passa junto ao Pico da Antónia, a caminho da Assomada, apenas nos apetece agradecer ao criador pela sua preguiça e ao mesmo tempo pelo seu desleixo que permitiu deixar as coisas tão naturais e tão belas. Parece que a terra se ergue do mar a bradar e a agradecer a Deus por a ter criado.
Quando penso nas noitadas carregadas de álcool, cheias de conversas banais sobre o desejo por mulheres predispostas na ânsia de sexo fácil ou de ultrapassar recordes de velocidade entre a Cidade da Praia e Assomada, às tantas da manhã, entre curvas e contra curvas, sinto-me insignificante perante tanta estupidez e loucura. Quando penso nas manhãs cobertas de lama pelas chuvadas da noite anterior, e nas viagens de ressaca até ao Tarrafal, através da Serra Malagueta, sobre o olhar inquisitório da Ilha do Fogo, deixo-me levar pela “sôdade” desta terra carregada de enigmas. Vivi nesta terra dois anos, é um país pelo qual tenho uma enorme simpatia, onde tenho bons amigos e onde terei, sempre, um enorme prazer em regressar. De passagem é claro.
Mas não se pense, com isto, que Cabo Verde é apenas terra de saudade. Continuam a ser as mulheres e as crianças a trabalhar, no melhor e no pior, enquanto os homens não fazem nenhum. Continua a existir miséria e contradições. Mas enquanto Cabo Verde é uma terra de gente sentida, feita de migalhas e de restos, só porque Deus resolveu brincar com coisas sérias, Angola, ao contrário, é uma terra em que tudo lhe foi concedido e em que tudo prolifera. Angola é uma terra de improvisos e oportunismos. Foi feita com algumas pazadas cheias de tudo, o que lhe deu força e ao mesmo tempo uma grande dose de arrogância. Só quem viveu de perto com as gentes do interior da Ilha de Santiago e agora vive com esta gente do interior, em Angola, consegue distinguir estas diferenças.
Quando entrei pela primeira vez em N`Dalatando senti-me perdido e desorientado. Depois, com o hábito consegui ir absorvendo e entranhando em mim o meio que me rodeava. Tudo, no ser humano, é uma questão de hábito e adaptação. Talvez a experiência em Cabo Verde tenha tornado a vinda para N`Dalatando mais fácil para mim.
No entanto, tudo foi diferente para pior. O odor da miséria humana ultrapassou tudo quanto se pode imaginar. Habituamo-nos a ver as crianças a brincar no meio de tal imundice e no seio de tamanha indiferença, sem que se possa fazer muito por isso. Transformamo-nos em seres alheados, com total ausência de sensibilidade e completamente resignados.
A indiferença, desta gente, á condições naturais desta terra e a passividade perante tudo quanto ela de bom lhes possa dar faz-nos sentir impotentes e cada vez mais desiludidos. O olhar métrico e ressentido, que nos fazem sentir, a toda a hora, como se uns centímetros de alma fizessem a diferença entre o branco e o preto, provoca-nos, uma cada vez maior, desorientação.
Nesta terra, tudo o que é natural é imponente. A noção das dimensões torna-se completamente diferente e dá-nos uma sensação das distâncias muito para além de tudo o que a nossa imaginação consegue alcançar. Não sei se estarei a exagerar com isto tudo. É que, fazer quarenta kilómetros na Ilha de Santiago, da Praia á Assomada, parece-nos o mesmo que fazer, aqui, duzentos de N`dalatando a Malange.
É um saltinho, diz-se por aqui.Quem me dera que fosse um saltinho daqui até aí.