sábado, 3 de outubro de 2009

A MORTE SURGE ANÓNIMA NO MORRO DO BINDA

Quando se entra no Morro do Binda, deixamos de respirar, simplesmente, porque não é preciso. O ar, de tão puro e leve, entra-nos pelos poros a dentro, alimentando-nos e fazendo-nos sentir que poderíamos ficar por ali uma vida inteira, absorvendo, generosamente, o que a natureza nos quer dar.

O Morro do Binda fica a uma dúzia de quilómetros de N`Dalatando, em direcção ao Dondo, caracterizando-se por ser uma zona montanhosa, de uma beleza espectacular, com uma florestação densa, praticamente virgem, onde ainda existem locais em que, homem ou bicho, jamais conseguiram entrar.

Mas se a vida se pavoneia, bela e selvagem, também a morte circula, numa azáfama de quem não tem mãos a medir. Parece que Deus perdeu o tino, dando as mãos ao Diabo e passeando-se ambos, por aqui, impunes e indiferentes ao bem e ao mal.

A estrada, asfaltada há pouco tempo, serpenteia-se vaidosamente por entre a imponência do arvoredo e a irreverência do capim, deixando fluir lentamente o trânsito intenso e pesado. A um país subdesenvolvido, junta-se uma via mais moderna, um parque automóvel obsoleto, para não dizer a cair de podre, à inconsciência de condutores incompetentes e temos a receita adequada para que se dê a tragédia, diariamente.

Os veículos, carregados de mercadoria e de gente, arrastam-se, ofegantes, até ao alto, deixando-se depois embalar pela descida íngreme, ultrapassando todos os limites mecânicos, perdendo qualquer capacidade de travagem, trucidando viaturas inocentes e estatelando-se no fundo das ravinas à mercê dos “abutres” que os hão-de, de seguida, esventrar. Quem se abeira da estrada e espreita, não se apercebe do cemitério de destroços e carcaças que jazem no fundo e que o mato cobre de imediato, numa tentativa cúmplice de ocultar a desgraça.

Quando, há dias, me disseram que havia para mais de uma dezena de corpos, na morgue de N`Dalatando, á espera de serem enterrados por falta de identificação, não fiz qualquer comentário. A bagagem de incredulidade que me acompanhou, quando viajei para estas bandas, já se esvaziou há muito. Pereceram no Morro, vítimas da pilhagem e da falta de escrúpulos de quem chegou primeiro e, supostamente, os deveria socorrer. Para além duma morte violenta, roubaram-lhes, também, a dignidade de manter um nome, único bem de que muitos se puderam orgulhar, quando em vida.

Uma guerra de cerca de três décadas fez perder o respeito pela morte, vulgarizando-a. Logo que se nasce, já o vulto negro começa a pairar e, embora, já não se morra de balas e de minas, continua a morrer-se facilmente e por coisas insignificantes. Pode não se morrer de um acidente de viação pouco grave, apenas com algumas escoriações e uma fractura numa perna, mas morre-se depois, só porque a perna não foi bem tratada e gangrenou.

Para ir de N`Dalatando ao Dondo demora-se cerca de uma hora e atravessar o Morro do Binda faz-se numa dezena de minutos. Agora, quando preciso de viajar, rogo sempre a Deus e ao Diabo ao mesmo tempo. A um, para que se lembre das horas boas, ao outro, para que se esqueça das más.












Estas fotos foram todas tiradas na última viagem que fiz a Luanda. A maior parte dos acidentes são recentes. Infelismente, quando eu voltar já muitas mais haverão para tirar.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

QUEDAS DE ÁGUA DE KALANDULA

Kalandula fica a cerca de 80 kms a norte de Malange. Para lá se chegar, partindo de N`Dalatando, tem de se percorrer aproximadamente 250 kms, sendo setenta em terra batida, cheia de buracos, pois a estrada ainda está em obras a seguir ao Cacuso.
Vale a pena o esforço e o cansaço. As quedas de água são imponentes e impressionam, sentindo-se de perto a natureza com toda a sua força e pujança.

Infelizmente, não existem condições que permitam disfrutar mais e melhor desta zona tão espectacular e com tanto potencial. Seria interessante criar acessos em toda a envolvente das quedas e desenvolver algumas actividades ligadas ao turismo e mesmo aos desportos radicais.
Em tempos, houve uma pousada na encosta do vale a jusante das quedas, mas agora encontra-se degradada e abandonada no meio do mato.




terça-feira, 22 de setembro de 2009

MENINO DI MUSSEQUE

Por estas bandas, terra de musseques feitos de pó e de chuva, já muito longe dum passado colonialista onde as referências portuguesas se vão perdendo, as crianças tratam o branco por “amigo”, julgando que é cubano, sem perceber que o facto de ser cubano, brasileiro ou português não significa, forçosamente, ter uma cor diferente da dele.
Quando, há dias atrás, me desloquei ao interior dum musseque, abeirou-se de mim um miúdo que me disse, assim sem mais nem menos, “ eh amigo você é bonito”, deixando-me, no mínimo, perplexo e desconcertado. Podia ter dito que eu tinha uns ténis giros ou que os meus óculos escuros, com que ele ambiciona um dia zungar(*) nas ruas do centro da cidade, eram fixes. Mas não foi assim ao contrário do que seria de esperar. O que terá levado uma criança de dez anos a elogiar assim uma pessoa totalmente desconhecida, já de meia-idade, sem qualquer razão aparente? Não sei se sou bonito ou feio nem acho que isso seja relevante aqui. Beleza não tem medida e nem depende de alturas e larguras. Beleza não é cor de pele nem sinal ao canto da boca. Beleza é, talvez, a forma como cada um enfrenta os seus sonhos.
Os musseques são os bairros periféricos da cidade, feitos com pequenas casas constituídas por quatro paredes de adobe e um telhado de chapas de zinco. Proliferaram no tempo da guerra civil com a fuga das gentes do interior. Trocaram as agruras dum isolamento sujeito aos caprichos duma guerrilha ideológica sem sentido pelo refúgio e pelo aconchego duma vida miserável mas mais segura. Agora, continuam a estender-se, irracionalmente, pelos fundos dos vales e encostas das montanhas circundantes, ao arrepio de qualquer critério urbano e ao sabor duma total precaridade humana.
Os meninos dos musseques vivem paredes meias com as cabras, os porcos e os cães raivosos. Mergulham nas águas contaminadas indiferentes às bactérias e aos parasitas que lhes ferram o sangue e os levam precocemente. Brincam descalços envoltos no pó da terra sépia e no meio de carcaças metálicas, muitas delas resíduos de guerra. Saltam imprudentes por entre pontas de metal aguçadas, ávidas por lhes rasgar a carne alimentada de fuba. Constroiem habilidosos carrinhos com arames e latas de refrigerante que depois comandam orgulhosamente com baraços desbravando caminho através duma selva plantada de detritos. Tornam-se mestres na arte de inventar com restos feitos de nada, acalentando o sonho de alcançar um mundo com outras cores.
Quando este miúdo se aproximou de mim e pronunciou aquelas palavras, estava, apenas, a ver o sinal de um mundo diferente e que ele acha mais belo do que o dele. Um mundo de que ele apenas houve falar e que, de vez enquanto, vê na televisão. Um mundo onde as crianças vão à escola de manhã e à tarde correm na relva, andam de bicicleta, jogam com consolas portáteis, brincam com carrinhos telecomandados e tem parques infantis com escorregas e baloiços. Um mundo onde os pais põem os filhos em escolas de futebol, oferecem “puppys” nos dias de aniversário e as suas casas têm quartos com janelas e paredes pintadas com cores diversas.
Um dia destes, quando encontrar novamente este menino, ou outro qualquer, vou ter de lhe dizer que a beleza não está em mim nem no meu mundo. Dir-lhe-ei, sim, que a verdadeira beleza está nele, na coragem com que brinca todos os dias e no brilho de um sorriso com que ilumina este seu mundo tão sombrio.
(*) Zungar significa passear




domingo, 13 de setembro de 2009

D`ASSOMADA a N`DALATANDO (2)

Já vivi em quatro países deste mundo e passei por mais uns tantos, o que não significa nada numa era tão global e que, cada vez mais, gera seres desenraizados e solitários. A verdade é que tudo isto me deu uma sensibilidade especial o que me fez adquirir uma percepção própria em relação às incongruências do Criador.
Se me fosse permitido e se tivesse de adjectivar este nosso Criador, a primeira palavra que me ocorreriam seria “preguiça” e que, para além disto, o mundo foi criado sobre a mais completa indolência. E se, me for também concedida tal imodéstia e tamanha presunção, passarei a expor a minha teoria sobre a criação deste mundo.
Deus, como toda a gente sabe era filho único, e por isso bastante mimado e cheio de birras. Seu pai, desesperado, sem saber o que fazer para lhe ocupar o tempo, naquele tempo onde não havia creches nem amas, resolveu dar-lhe uma tarefa para o entreter. Sentou-o no meio do jardim, colocou-lhe á frente, um monte de terra, um balde, uma pá e uns quantos utensílios que achou adequados e disse-lhe: “fica aí e entretêm-te a criar o Mundo que eu tenho mais que fazer”.
Ora, como é óbvio, Deus marimbou-se para aquilo tudo. Espremeu umas tantas migalhas daqueles detritos que deixou cair por entre os dedos e deu origem a Cabo Verde. Com o pé, talvez o esquerdo, ajeitou uma porção daquela nojenta massa térrea e lá conseguiu configurar este país a que resolvemos chamar Portugal. Com tudo o resto, ainda se atreveu dar umas pazadas completamente aleatórias e desajeitadas, donde surgiu África e, no caso desta história, mais concretamente Angola. Depois, num acto de profundo desdém e desinteresse, mijou naquilo tudo, deixando-nos num estado de total abandono, do qual nunca mais quis saber, refastelando-se eternamente no seu altar de divindade.
Não quero, com estas considerações teológicas, desculpar nem ilibar seja o que for relativamente à desgraça humana. Até porque não sou muito dado a questões metafísicas nem muito menos a questões de fé, que nos permitem levar uma vida despreocupada e isenta. Desejo, apenas, chamar a atenção de que existem mundos muito menos protegidos e, talvez, desgraçadamente esquecidos.
Ainda consigo vislumbrar em mim o sentimento de quando pisei a primeira vez a Ilha do Sal em Cabo Verde e, depois, a Cidade da Praia. Nunca tinha estado em terras africanas e o calor que se apoderou de mim, na altura, foi inesquecível. Até essa altura, da minha vida, nunca me tinha sentido tão só e ao mesmo tempo tão próximo de tudo quanto é a nossa origem. O cheiro diferente, o suspiro da terra, a paisagem cinzenta e pobre mas ao mesmo tempo forte, quente e intrínseca á espécie humana, própria dum povo em que nada lhes foi concedido. Apenas mar e terra a erguer-se a Deus num acto de penitência e resignação.
Quando se passa junto ao Pico da Antónia, a caminho da Assomada, apenas nos apetece agradecer ao criador pela sua preguiça e ao mesmo tempo pelo seu desleixo que permitiu deixar as coisas tão naturais e tão belas. Parece que a terra se ergue do mar a bradar e a agradecer a Deus por a ter criado.
Quando penso nas noitadas carregadas de álcool, cheias de conversas banais sobre o desejo por mulheres predispostas na ânsia de sexo fácil ou de ultrapassar recordes de velocidade entre a Cidade da Praia e Assomada, às tantas da manhã, entre curvas e contra curvas, sinto-me insignificante perante tanta estupidez e loucura. Quando penso nas manhãs cobertas de lama pelas chuvadas da noite anterior, e nas viagens de ressaca até ao Tarrafal, através da Serra Malagueta, sobre o olhar inquisitório da Ilha do Fogo, deixo-me levar pela “sôdade” desta terra carregada de enigmas. Vivi nesta terra dois anos, é um país pelo qual tenho uma enorme simpatia, onde tenho bons amigos e onde terei, sempre, um enorme prazer em regressar. De passagem é claro.
Mas não se pense, com isto, que Cabo Verde é apenas terra de saudade. Continuam a ser as mulheres e as crianças a trabalhar, no melhor e no pior, enquanto os homens não fazem nenhum. Continua a existir miséria e contradições. Mas enquanto Cabo Verde é uma terra de gente sentida, feita de migalhas e de restos, só porque Deus resolveu brincar com coisas sérias, Angola, ao contrário, é uma terra em que tudo lhe foi concedido e em que tudo prolifera. Angola é uma terra de improvisos e oportunismos. Foi feita com algumas pazadas cheias de tudo, o que lhe deu força e ao mesmo tempo uma grande dose de arrogância. Só quem viveu de perto com as gentes do interior da Ilha de Santiago e agora vive com esta gente do interior, em Angola, consegue distinguir estas diferenças.
Quando entrei pela primeira vez em N`Dalatando senti-me perdido e desorientado. Depois, com o hábito consegui ir absorvendo e entranhando em mim o meio que me rodeava. Tudo, no ser humano, é uma questão de hábito e adaptação. Talvez a experiência em Cabo Verde tenha tornado a vinda para N`Dalatando mais fácil para mim.
No entanto, tudo foi diferente para pior. O odor da miséria humana ultrapassou tudo quanto se pode imaginar. Habituamo-nos a ver as crianças a brincar no meio de tal imundice e no seio de tamanha indiferença, sem que se possa fazer muito por isso. Transformamo-nos em seres alheados, com total ausência de sensibilidade e completamente resignados.
A indiferença, desta gente, á condições naturais desta terra e a passividade perante tudo quanto ela de bom lhes possa dar faz-nos sentir impotentes e cada vez mais desiludidos. O olhar métrico e ressentido, que nos fazem sentir, a toda a hora, como se uns centímetros de alma fizessem a diferença entre o branco e o preto, provoca-nos, uma cada vez maior, desorientação.
Nesta terra, tudo o que é natural é imponente. A noção das dimensões torna-se completamente diferente e dá-nos uma sensação das distâncias muito para além de tudo o que a nossa imaginação consegue alcançar. Não sei se estarei a exagerar com isto tudo. É que, fazer quarenta kilómetros na Ilha de Santiago, da Praia á Assomada, parece-nos o mesmo que fazer, aqui, duzentos de N`dalatando a Malange.
É um saltinho, diz-se por aqui.Quem me dera que fosse um saltinho daqui até aí.

domingo, 28 de junho de 2009

comicaginário

comicaginário
D`ASSOMADA a N`DALATANDO (1)


Pois bem, caros amigos que não me ouvem, nem sequer me vão ler, finalmente resolvi escrever, por aqui, umas humildes e pobres linhas. Criei este blogue há um ano e tal, imaginem, estava eu nessa terra de “morabeza” que dá pelo nome de Assomada, em pleno coração da Ilha de Santiago em Cabo Verde.
Desde aí, por diversas circunstâncias ou, talvez, por preguiça mental nunca mais o abri. Na altura, pensei que seria interessante partilhar algumas ideias e até, como certa forma de alívio, poder despejar cá para fora as coisas da alma ou, provavelmente, criar um refúgio de divagações próprias de um ser insatisfeito, fora do seu meio e que, já há algum tempo a esta parte, vive na procura constante de atingir sempre aquilo que não consegue alcançar.
Quando, aqui há uns tempos, li o blogue do meu caro amigo Badio-di-fora, voltou esta ideia. Certamente, ninguém me vai passar patavina nenhuma, mas pronto fica o registo.
Neste momento, encontro-me, não no coração mas talvez, num rim de Angola numa terra de seu nome N`Dalatando, antigamente chamada cidade Salazar e também apelidada de cidade jardim. Por diversas razões, perdeu-se um bocado o encanto próprio dos jardins, (o que espero vir a tentar explicar mais adiante) mas a troca para o nome actual até que não foi mal pensado.
Morabeza, também é coisa que por aqui não há muito, mas isso fica para depois.

Luanda, 28 de Junho de 2009