segunda-feira, 10 de setembro de 2018

FUI EU QUE GRAVEI TEU NOME


Os meus olhos abriram-se, sobressaltados. Uma mão macia pousou no meu ombro, despertando-me o corpo, meio empedernido. "Senhor! Sente-se mal?", alguém perguntou. "Precisa de alguma coisa? Sentado aí, com o rabo nesse banco frio, vai acabar por gelar." Um vulto sombrio tinha-se debruçado sobre mim, despejando um bafo, morno e azedado. Murmurei um leve agradecimento e respondi que não, que estava tudo bem. A mulher, pequena e larga, afastou-se vagarosamente, envergando uma bata cinzenta que lhe dava pelos tornozelos e uma bandeirola vermelha debaixo do braço. "Devo ter-me deixado dormir!", pensei. Na verdade, alguns minutos antes, depois de me ter apeado do comboio, decidi encostar-me um pouco no banco corrido do apeadeiro e, por breves momentos, fechei os olhos. A viagem tinha sido longa e, apesar do conforto do comboio e um sono leve me tenha embalado, sentia-me cansado. Aliás, não era propriamente um cansaço, era mais uma modorra, provocada pela inquietude que me consumiu durante toda a viagem, como se eu fosse uma criança, ansiosa por chegar ao seu destino. Tinha cerca de doze anos quando os meus pais me levaram dali, passaram-se quase quatro décadas, e certamente tudo o que me ligava àquela terra ter-se-ia dissipado entretanto. A minha família mais chegada também partira há muito, restando-me apenas um tio afastado e alguns amigos de infância, e com certeza já não nos reconheceríamos, se nos víssemos. Foi esse meu tio que me contactou, há alguns dias, por causa de um assunto que estaria por resolver, relacionado com uma pequena herança, razão pela qual me vi obrigado a fazer esta viagem.
            Estávamos em Março, num dia soturno, e a tarde insistia na mesma frieza da manhã. Deixei de ver a guarda da passagem de nível, que entrara dentro de um pequeno edifício de alvenaria caiada, situado no extremo do apeadeiro. De ambos os lados da linha férrea, viam-se os sinais luminosos apagados, e as cancelas metálicas abertas, pintadas de vermelho e branco. Os poucos passageiros que desembarcaram comigo já tinham debandado, como ratos regressados às tocas. A povoação recolhia-se no silêncio, entre cada paragem de comboio. Escutava-se apenas um leve burburinho vindo do pequeno café, à saída do apeadeiro. Ergui-me do banco frio de pedra e peguei na mala, com a intenção de procurar a casa de meu tio. Tinha prometido a mim mesmo que, assim que chegasse, iria de imediato tratar do que me tinha levado até ali e que não me levaria por certos apelos da memória. Mas não, primeiro, com a desculpa do cansaço, deixei-me ficar sentado naquele banco e, agora, por mais que os meus pés se quisessem mexer, parecia que algo me colava ao chão, como se uma matéria densa, metálica, tivesse subitamente preenchido todos os interstícios, todas as intermitências do meu corpo. A memória é uma crosta que se vai agarrando a nós, que só o tempo faz amadurecer até cair por si própria, tal como a casca do pinheiro se desliga um dia do seu tronco. Uma crosta que, ao longo de toda a nossa vida, provoca um prurido, e, se não a soubermos cuidar, se a tentarmos arrancar antes do seu tempo, sem estarmos preparados para tal, o risco da dor será sempre maior que o do alívio. Tinham passado quase 40 anos desde que estivera ali pela última vez, desde aquele fatídico domingo de Páscoa que me destroçou a existência e me fez partir, vergado pelo peso das minhas próprias recordações. E foram, talvez, essas recordações que me fizeram permanecer sobre a laje cimentada do cais, olhando desassossegado à minha volta, não resistindo à tentação de fincar as unhas naquele prurido, cada vez mais intenso, mesmo que isso me pudesse deixar em carne viva.
            O velho telheiro de madeira, cinzenta e estiolada, tinha dado lugar a uma construção de alvenaria branca. Sobre as paredes, sujas e descaliçadas, para além do placar com os horários dos comboios, viam-se alguns vestígios de cartazes eleitorais, um panfleto a anunciar as festas da freguesia e uns indecifráveis grafites, já quase sem cor. No lugar da antiga tábua, pintada a branco e com o nome da povoação em letras pretas e redondas, via-se agora um painel de azulejo empalidecido, orlado a azul e letras muito rectangulares, também azuis. O muro de pedra, paralelo à linha, que separava o apeadeiro do jardim, era agora um gradeamento metálico. O jardim onde existia uma palmeira velha, um canteiro de rosas brancas e as glória-da-manhã se abriam ao raiar do dia, passara a parque de estacionamento. Até mesmo o cheiro intenso do creosoto, vindo das sulipas de madeira, ou o aroma fresco das heras que trepavam o muro, tinham desaparecido, restando somente um incaracterístico odor a cimento e a cal. Aparentemente, nada restara do passado, e eu encontrava-me num mundo inverso desse passado.
            Só que nem tudo mudara; olhando mais atentamente, reparei que o banco, onde me sentara anteriormente, permanecia igual; corrido, robusto e sólido, com o assento e as costas em pedra. Foi naquele momento que a minha memória se avivou e me dirigi a uma das extremidades do banco, debruçando-me sobre ele. Estendi o braço, com os dedos trementes tacteei suavemente a superfície polida do calcário, tal como um cego quando lê a página de um livro, e lá estava, o único vestígio de um passado longínquo. Apesar da erosão do tempo, apesar do desgaste provocado pelos inúmeros corpos passageiros, ainda se podia sentir aquele coração sulcado na pedra, e, dentro dele, aqueles dois nomes: Mel e Romeu. Observei com atenção, durante mais algum tempo; era mesmo o meu nome. Sentei-me novamente e deixei-me ficar, com o corpo mais inerte do que o banco, e com um olhar profundamente desconcertado. Rodei a cabeça para a minha esquerda; um metro ao meu lado estava Tomé e entre nós os dois estava Mel. O mundo, à minha volta, recuava quarenta anos.
            Chamava-se Amélia mas tratávamo-la por Mel, não só pelo nome, mas porque toda ela se assemelhava a mel. Tinha cabelos cor de âmbar e os olhos, embora fossem castanho esverdeados, eram tão doces que, sempre que nos fitava, derretíamo-nos mais do que o próprio mel. Tomé era o meu melhor amigo e a vida um sem o outro não nos fazia o menor sentido. Nascemos e crescemos juntos, partilhámos a mesma escola e os mesmos professores, vivemos as mesmas aventuras, tivemos as mesmas angústias e as mesmas certezas, e acabámos ambos por amar a mesma pessoa pela primeira vez. Invariavelmente, todos os domingos, depois da missa, corríamos disparados até ao banco do apeadeiro e ficávamos ali, lado a lado, à espera que Mel chegasse e se sentasse no meio dos dois. Depois entretinhamo-nos a contar as carruagens dos infindáveis comboios de mercadorias, ou a observar, embevecidos, a passagem do sud-express a caminho de Paris, e a imaginar como seria ser estrangeiro e viajar naqueles compartimentos, que, segundo ouvíamos dizer, eram maiores e mais confortáveis do que as nossas próprias casas. Mesmo nos dias de semana, depois da escola, costumávamos ficar por ali a observar o movimento de quem vai e de quem chega: dos estudantes e dos empregados do comércio a caminho de Coimbra; das peixeiras vindas da Figueira; das vendedoras de queijadas, gordas e fala-barato; dos ferroviários a regressar do Entroncamento, fardados que nem uma castanha, boné enfiado até ao pescoço e lancheira de couro numa das mãos; dos carros de bois carregados de palha de milho, a aguardarem que a passagem de nível se abrisse. Aquele apeadeiro passou a ser o centro do nosso universo. Era ali que a terra terminava e começava o resto da nossa existência. Era ali o início de todos os nossos sonhos.
            "Qual é que é mais rica, Lisboa ou o Porto?", perguntava Tomé, enquanto eu e Mel nos mantínhamos calados. "É o Porto porque tem um rio de ouro, enquanto Lisboa só tem um braço de prata", respondia Tomé a si mesmo, lançando, de seguida, duas fortes gargalhadas. "E sabes que Lisboa tem um comboio que anda por baixo da terra, como uma toupeira?", retorquia eu. "E como sabes tu tal coisa? Por acaso já lá estiveste?", apressava-se Tomé a perguntar. "Claro que já lá estive; quando meu tio embarcou para o ultramar e nos fomos despedir dele. Lembro-me perfeitamente daquele barco gigante, carregado de tropas a acenarem-nos com lenços brancos, enquanto desaparecia por baixo da enorme ponte. Um dia, também hei-de viajar naquele barco. É um barco que vai a qualquer parte do mundo", dizia eu, com um certo ar triunfante. Mel olhava-me com alguma admiração, mas não se pronunciava, limitando-se a rodar a cabeça, conforme eu e Tomé íamos falando. "Um dia destes também vamos viajar, eu e a Mel. Vou levá-la ao Porto. Gosto mais do Porto. Vamos passear no rio Douro e depois vamos ver a Santa Maria da Adelaide", exclamava Tomé, enquanto fitava Mel, com os olhos negros e brilhantes, sob as duas sobrancelhas espessas e muito juntas, na espectativa de que ela rejubilasse com tamanha revelação. "Tens sonhos muito pequenos", dizia eu. "Quem é que leva a namorada a ver uma morta dentro dum caixão, que mais parece uma videira seca?" "Namorada? Namorada de quem?", suspirava Mel, num tom inocente. Tomé não acusava a desfeita e reagia de imediato, demonstrando a sua paixão por Mel, apressando-se a dizer, alto e em bom som, que a amava mais do que a todas as coisas, que sem ela preferia morrer. Depois, deslocava-se ao jardim, trazia uma rosa branca e oferecia-a a Mel, prostrando-se de joelhos em frente a ela. Mel colocava a rosa nos cabelos e sorria com aqueles lábios cheios e curvilíneos, repuxados para fora, como se tentasse soprar o sorriso para longe. Por vezes olhava-me de soslaio, disfarçadamente, com o seu ar sempre cândido e ambas as mãos espalmadas sobre o assento do banco, enquanto abanava as pernas nuas e muito finas. A partir de determinada altura, tanto para mim como para Tomé, tudo parecia girar em redor de Mel, tornando-se, até certo ponto, uma obsessão. Mas enquanto ele fazia questão de extravasar a sua felicidade, eu remetia-me ao silêncio, levado, por um lado, pela minha timidez e, por outro, pelo medo de magoar Tomé. Para ele, eu era o amigo em quem podia confiar, a quem podia confessar sem qualquer receio, sem o mínimo vislumbre de ameaça, todo o amor que sentia por Mel. Eu ouvia-o, mantendo-me impenetrável, fechando-me sobre mim próprio como um bicho de conta, a tentar conter a amargura por não haver outra Mel igualzinha àquela. O mundo faz réplicas de tanta coisa, e tinha logo que existir apenas uma, uma única e inigualável Mel. Não me passava pela cabeça, nem tão pouco pela de Tomé, que a felicidade só dura enquanto não chega a incerteza.
            Os pensamentos em que me tinha afundado, foram subitamente interrompidos pelo toque desenfreado das campainhas e pelo intermitente pisca-pisca dos sinais luminosos. A guarda da passagem de nível apressou-se a fechar as cancelas, desta vez sem a bandeirola debaixo do braço. Percebi que iria passar um comboio sem paragem. Olhei mais uma vez aquele coração gravado na pedra, abraçando o meu nome e o de Mel, e recuei mais uma vez até àquele domingo de Páscoa. Tomé já me aguardava, completamente louco de raiva e um olhar alucinado como nunca lhe tinha visto antes. "Como foste capaz? Como me pudeste fazer isto?", berrava ele. "Julgava-te o meu melhor amigo!", continuou, atirando-se a mim, esmurrando-me o peito com ambos os punhos cerrados. "Não percebo ao que te referes!", ripostei, perplexo, enquanto me tentava defender, agarrando-lhe os punhos. "Afinal, não passas de um cobarde! Se a amas porque não o dizes? Porque não o assumes tal como eu, em vez de te acobardares?", insistiu. "Porque o fizeste? Porque tinhas de gravar o teu nome por cima do meu?", concluiu, enquanto me fulminava com um olhar inquisidor. Assim que me libertei-me de Tomé, virei-me na direcção do velho abrigo de madeira, procurando uma explicação, e foi quando me lembrei do dia em que ele desenhou aquele coração nas costas do banco. Levou um dia inteiro a fazê-lo, com o entusiasmo e a ingenuidade de uma verdadeira paixão, justamente no dia do seu aniversário, recorrendo ao bico do canivete que eu lhe tinha oferecido como prenda de anos. "Deves estar a fazer confusão, Tomé. Não fui eu...", ainda disse, voltando-me novamente para ele. Só que, quando me virei, já não o vi, Tomé desaparecera inesperadamente da minha vista.
            Foi então que ouvi aquele grito carregado de agonia, enquanto o comboio sem paragem passava, fulminante, deixando atrás de si um buraco negro, como se arrastasse, com toda a sua força de sucção, a existência de tudo por quanto passava. O pressentimento de que algo terrível acontecera tolheu-me os movimentos. A angústia por já não ver Tomé, por ele poder não estar vivo, a esmurrar-me ainda o peito, preenchera, de repente, todo o vazio que a passagem do comboio provocara. O odor do creosoto tinha-se transformado em odor a sangue e vísceras. Um odor que começou a trepar pelas paredes do cais, vindo até mim, tão intenso e corrosivo que me devorava os ossos, dilacerando-me por fora e por dentro, como se tivesse sido eu a ser trucidado pelas garras metálicas da locomotiva. Fragmentos de carne humana espalhavam-se ao longo da linha férrea, ainda pulsantes, como se, agora, fossem coisas diferentes, corpos de carne viva a agonizarem antes do estertor final. Então, agachei-me à beira do cais, dobrando-me sobre mim próprio, e soltei um guincho de dor. Naquele momento era só eu e a minha dor. Eu era a própria dor. Já não ouvi os gritos de Mel que se aproximava de mim a correr. Já não ouvi os gritos que o mundo lançou sobre a terra inteira.
            "Senhor! Senhor! Tenha cuidado que o comboio rápido vai passar. Afaste-se da beira do cais", escutei, subitamente. Recuei dois passos e olhei. A guarda da passagem de nível gesticulava na minha direcção, dois braços gordos e muito curtos. Peguei na mala, que se encontrava sobre o banco corrido de pedra, e dirigi-me para a saída do apeadeiro. Junto à passagem de nível, aguardei que o comboio rápido passasse, até se tornar somente um ponto oscilante a sumir-se no infinito. Olhei ao longo da linha férrea, que não era mais do que um tapete negro e triangular, sobre o qual se afunilavam duas linhas muito rectas e luzidias. Então uma nesga de sol perfurou as nuvens, socando-me os olhos como um punho cerrado, obrigando-me a fechá-los. Foi quando os abri, logo de seguida, que me pareceu ver Tomé. Era o seu busto entre os dois carris; apenas se via o seu busto, como se o resto do seu corpo, do peito para baixo, se tivesse cravado por entre as pedras do balastro. Tomé fitava-me. O seu rosto era de pedra azulada e tinha a cor da carne morta. Os olhos, raiados de sangue, estavam tristes e esvaziados.
            Do apeadeiro para o centro da povoação subia-se por uma estrada de asfalto, estreita e ladeada, de ambos os lados, por pequenas casas caiadas, todas com uma porta a meio e uma janela de cada lado. Ao fundo, na parte mais alta da estrada, estendia-se um muro alto, também caiado, por trás do qual se viam algumas pontas de ciprestes, o que me levou a pensar que se tratava do cemitério. A casa de meu tio, segundo me explicaram no café, à saída da passagem de nível, ficava naquela direcção e era para lá que eu me dirigia. A noite aproximava-se e, embora o meu tio me tenha oferecido estadia, haveria que chegar o mais depressa possível, pois, por ali, segundo ele me dissera, era costume ir-se para a cama cedo. Tinha perdido demasiado tempo no apeadeiro e, provavelmente, o meu tio já se estaria a interrogar pelo meu atraso. Embora a minha idade já não me permitisse grandes correrias, estuguei o passo até chegar ao cimo da subida, onde terminavam as casas e se abria um pequeno largo, no qual me deparei com um cruzeiro de pedra ao meio, e de onde saíam duas outras estradas, estas calcetadas em pedra de granito irregular; numa via-se o muro e o portão do cemitério, na outra, ao fundo, via-se a torre da igreja. Como até ali não me tinha cruzado com ninguém, decidi entrar numa pequena loja, para perguntar novamente onde era a casa de meu tio, cuja porta dava para o largo e onde se viam alguns jornais e revistas, de um lado, e cestos de flores do outro. Subi os dois degraus de pedra e entrei. Uma mulher, de costas para mim, colocava maços de tabaco nas estantes, por trás do pequeno balcão. "Boa tarde", disse eu. A mulher retribuiu, mantendo-se mais alguns segundos de costas, enquanto arrumava minuciosamente o último maço, parecendo não ter pressa.       "Deseja alguma coisa?", perguntou, virando-se para mim. Durante algum tempo olhámo-nos mutuamente, sem nada dizermos. Depois, mostrando-se curiosa, talvez pelo facto de eu a fitar intensamente, continuou: "Não é daqui, pois não? Ou conhecemo-nos de algum lado?". "És tu, Mel?", balbuciei, tentando sair do pasmo onde me enfiara nos últimos momentos. "Mel? Deve estar a fazer confusão. O meu nome é Amélia", ripostou. "Mel, sou eu, o Romeu. Não me reconheces?", insisti, parecendo não a ouvir. Foi então que algo dentro dela pareceu despertar, ao ouvir o meu nome, e lançou um sorriso. As recordações nunca morrem dentro de nós, apenas entram num sono profundo, numa espécie de estado de coma que pode durar vidas inteiras, mas, muitas vezes, basta um clique, um pequeno sinal, um simples nome, para que elas acordem e se tornem vivas. Se houve algum momento em que eu tive alguma certeza na vida foi aquele. Reconhecera-a de imediato. O seu cabelo já não tinha a cor de âmbar, o tempo encarregara-se de o grisar. O seu corpo amadurecera, perdendo a candura, a graça de menina. Os seus lábios eram menos cheios, mas continuavam curvilíneos e a soprar os sorrisos para longe. O sorriso que ela acabara de lançar não me deixara qualquer dúvida. Conversámos durante algum tempo. Falámos, essencialmente, da nossa vida depois daquele dia. Daí para trás, nada existira para nós. Mel vivera a sua vida toda naquela terra, nunca casara e não tinha filhos. Tornara-se professora primária, cantava no coro da igreja e, recentemente, abrira aquela pequena loja. Por vezes fazia algumas viagens dentro do país; ia a Lisboa e ao Porto, raramente ao Algarve e, mais frequentemente, a Nossa Senhora de Fátima, ao Bom Jesus e até a Santa Maria da Adelaide. Eu contei-lhe que, depois de ter crescido em Lisboa, tinha andado largos anos por África e por outras partes do mundo, vivido na Holanda, onde casara e tivera dois filhos, tendo regressado a Lisboa há cerca de dez anos, onde vivia actualmente. Contei-lhe também sobre o motivo que me tinha feito viajar até ali e que teria de voltar para Lisboa já no dia seguinte. Por fim, disse-lhe, já em jeito de despedida, que tencionava, antes de me ir embora, fazer uma visita ao cemitério, e perguntei-lhe se ela não me venderia um ramo de flores, que eu pudesse levar. Houve um silêncio entre nós, até que ela se deslocou aos cestos de flores que estavam à entrada e compôs um pequeno ramo de rosas brancas. "Toma, são estas que eu levo sempre!" Peguei no ramo de rosas e saí. Ela seguiu-me, desceu os degraus e ficou ali, de pé a olhar-me, enquanto eu me afastava. "Sabes... Fui eu...", ainda ouvi ela dizer, com uma voz sumida e trémula. "Fui eu que gravei o teu nome!".
            Continuei em frente sem me virar, sem dizer mais nada. Há palavras que fazem mais sentido quando se perdem no silêncio. Talvez, há quarenta anos, houvesse palavras para dizer um ao outro. Teria sido nessa altura que eu deveria ter pegado nas palavras e lhas deveria ter dito, tal como se lhe oferecesse uma rosa branca; mas não, não o fiz e, agora, já nada mais restava. Agora, por mais palavras que houvesse, cairiam sempre naquela espécie de buraco negro, que um comboio rápido provoca ao passar.
            Com o ramo de rosas numa das mãos e a mala de viagem na outra, entrei dentro do cemitério, através de um sólido portão de ferro forjado, que guinchou assim que o empurrei. A sepultura de Tomé ficava logo à entrada, junto à sebe que ladeava a ala central e dum cedro que lhe faria sombra, caso estivéssemos num dia de sol. Sobre o monte de terra, praticamente raso e informe, via-se uma lamparina de azeite apagada, uma jarra de flores já murchas e a lápide de pedra, negra e velha. As inscrições da lápide eram totalmente ilegíveis e o retrato a preto e branco de Tomé, dentro de uma moldura oval, estava quase irreconhecível. Retirei as flores velhas da jarra e coloquei o ramo de rosas brancas. De pé, com as mãos cruzadas sobre o meu baixo ventre e cabeça levemente reclinada, deixei-me ficar durante algum tempo aos pés da sepultura. Tomé fitava-me, mas os seus olhos já não eram tristes e vazios. O seu rosto já não era uma pedra fria e azulada. Pelo contrário, por trás daquele retrato, desbotado e puído pelas dezenas de anos, o seu rosto sorria, parecendo-me, até, ver nele um certo vislumbre de felicidade. Pensei no meu tio, que já deveria estar preocupado por eu ainda não ter chegado, e na viagem que teria de fazer no dia seguinte. Seria, certamente, uma viagem de regresso tranquila. A inquietude, que me perseguia há algum tempo, deixara de me incomodar. Aquele prurido, que há muito sentia debaixo da pele, de repente, parecia ter aliviado.

sábado, 8 de setembro de 2018

A INSIGNIFICÂNCIA DE ZERO


Toc, toc, toc... Toc, toc, toc. "Mas que raio! É impressão minha ou bateram à porta?", murmurou, Um, para si mesmo, muito hirto e plantado no lado esquerdo do seu único sofá. "Será algum pássaro? Se fosse assim, ao contrário de um toc, toc, toc, ouvir-se ia um tic, tic, tic, como é bem de ver. Ou será a neve? Provavelmente soltou-se algum pedaço e deslizou desde o alto da encosta, vindo embater contra a porta. Mas, se assim fosse, ter-se-ia ouvido apenas um bum, em vez deste irritante toc, toc, toc. Não, terá de ser outra coisa qualquer. Tudo menos pessoas. Pessoas é impossível. Eu sou o Um, o único, e como eu não há mais nenhum."
            Podia considerar-se, se mais alguém houvesse neste mundo para o fazer, que Um era ímpar. Era tão alto e magro que parecia varejar, mesmo sem qualquer toque de vento. Do alto da sua altura pendia um nariz enorme e alongado que, de tão desproporcionado, só não o fazia dobrar para a frente porque Um tinha a espinha demasiado rígida. Na verdade, tudo em Um era único. Um só tinha um olho. Um só tinha um braço. Um só tinha uma perna. Um só tinha meio par de sapatos e meio par de meias. E, vá-se lá saber porquê, o seu único sapato era demasiado grande para um pé tão curto, o que lhe provocava mau andar. Bom, na verdade, Um não andava, saltaricava. Ou seja, no seu todo, Um não devia mesmo nada à perfeição. Seria, talvez, a pessoa mais feia entre todas as pessoas, mas como era também a única pessoa sobre a Terra, tal coisa perdia a sua real importância, ficando mesmo reduzida à insignificância de um zero. Um considerava-se até o ser mais belo do universo e, sempre que se olhava ao espelho, através do seu único olho, não podia deixar de exclamar: "Eu sou o Um, o único, o mais perfeito, e como eu não há mais nenhum."
            Toc, toc, toc. "Outra vez! Será que não me deixam em paz?", resmungou Um. Toc, toc,toc. "Mas está teimoso, seja lá o que for," continuou, cada vez mais irritado e iniciando um saltarico nervoso, ao lado do sofá. Um só possuía um sofá, exíguo, onde só cabia ele e mais ninguém, mas no qual nunca se sentava devido ao problema da espinha, como já foi referido antes. Preferia manter-se de pé, invariavelmente sobre o lado esquerdo, todas as infindáveis horas do dia e da noite. A casa de Um também era pequena, de um só compartimento, de uma só porta, de uma só janela, onde cada coisa tinha o seu sítio próprio, que só poderia ser aquele e mais nenhum outro. Sob o seu olhar constante e atento, tudo se mantinha devidamente arrumado, bastando um qualquer objecto, qualquer ele que fosse,  deslocar-se um único e simples infinitésimo de milímetro do seu exacto lugar para que Um ficasse completamente fora de si. O que era raro acontecer, é claro, devido à condição solitária de Um. A não ser que, por exemplo, alguma formiga, alguma barata, ou outro bicharoco mais descuidado, embatesse em qualquer coisa, toda a casa era uma total pasmaceira.
            Toc, toc, toc. "Bom, não há volta a dar-lhe! Tenho de ver o que se passa, ou não me deixam descansado," proferiu Um para ninguém, agora mais resignado e saltaricando até junto da porta. "Quem está aí?", berrou ele, num tom intimidatório, obtendo apenas silêncio como resposta. "Se está aí alguém é melhor responder," insistiu Um. "Sou eu, o Zero," ouviu-se, por fim, vinda do exterior, uma voz muito ténue e tremelicante. "Que queres tu, Zero? Se é esmola, tira daí o sentido. Nesta casa só existe uma coisa de cada coisa e tudo o que te possa dar fico eu sem ela." "Não quero nada ti," retorquiu Zero, "mas um pouco de abrigo qualquer um pode dar, não custa dinheiro. É que está um frio de rachar aqui fora. Podes abrir a porta?" Por breves segundos, Um hesitou, mas, depois, lá acedeu e deitou a única mão à maçaneta da porta, deixando-a apenas um pouco entreaberta, enquanto espreitava para o lado de fora. Do alto da sua enorme altura, olhou em frente e nada viu, a não ser um manto branco de neve a estender-se pela encosta. "Oi! Estou aqui em baixo," suspirou Zero. Como não se conseguia curvar, Um revirou o olho para baixo e lá estava aquele ser roliço, com o aspecto de um ovo, tremendo tanto que se ia enterrando cada vez mais na camada de neve. "Afinal, o que te aconteceu para apareceres aqui neste estado?", perguntou Um. "Como já te disse, chamo-me Zero e vivo na terra do nada. Acontece que sou muito distraído e acabei por me perder na floresta, até vir dar ao alto desta encosta. Foi quando, devido a esta maldita forma arredondada, rebolei encosta abaixo e vim parar aqui, mesmo em frente da tua porta," explicou Zero. "Coisas que acontecem. Mas fui muito claro, não te posso ajudar em nada", disse Um, com frieza, " e o que ganharia eu em te ajudar? És um zero, não tens qualquer valor para mim. Desaparece mas é daqui, que tenho mais que fazer." Zero olhou Um de baixo ao alto, com um ar desapontado, mas não se deu por vencido. "O meu valor depende do lado em que estiver. Se me puseres do lado esquerdo, não valho nada, realmente, mas se me puseres do lado direito, passas a valer dez e, quem sabe, um dia com mais zeros até podes valer milhões", revelou Zero, com uma certa euforia, enquanto Um erguia o seu único sobrolho, revelando-se interessado. Então, depois de alguns segundos pensativo, soltou uma gargalhada inesperada. "Deves estar louco! Dez pessoas nesta casa, onde caberiam dez pessoas nesta casa? E como ia comer e beber tanta gente? Só há uma mesa pequena, só há um prato e um talher, só há um copo e uma chávena de chá. Isto ia tornar-se uma bagunça. Não, não suportaria tamanho caos, prefiro tudo tal como está. Aqui só há lugar para um, para mim e mais nenhum." "Então, deixa-me entrar, mesmo ficando do lado esquerdo. Pelo menos, faço-te companhia, já percebi que vives sozinho", suplicou Zero, por entre o bater dos dentes. "E quem te disse que quero companhia? Não insistas nada-de-nada. Olha, estou a ficar gelado também só de te ouvir", exclamou Um, preparando-se para fechar a porta e enquanto dava um último revirar de olho para espreitar o estado de Zero, que já se encontrava quase totalmente soterrado na neve. Foi neste espaço de tempo, entre o fechar e não fechar a porta, entre o desdém e a complacência, que o único coração de Um parece ter tido um vislumbre de comiseração e o fez estancar de repente quando rodava sobre si próprio. "Bom, parece que hoje é o teu dia de sorte, não te vou deixar morrer à minha porta, enregelado. Anda daí, mas não abuses da minha boa vontade; ficas quietinho do lado direito do sofá e só fazes o que eu te mandar, pode ser que ainda me venhas a ser útil." Ao ouvir tal coisa, Zero parece ter ressuscitado, lançando-se subitamente para cima da soleira da porta, o que quase derrubou Um. "Espera, vais ter de me ajudar, não vês que não tenho braços nem pernas", revelou Zero, totalmente exposto ao pé de Um. "Olha, desenrasca-te, também só tenho um braço", proferiu Um, fechando com estrondo a sua única porta. Um saltaricou de novo para o lado esquerdo do seu único sofá, e Zero, depois de um forte safanão que serviu de balanço, rebolou todo entusiasmado para o lado direito, ou seja para o lado esquerdo de quem olhasse a cena por fora. "Posso ficar no teu sofá?", ainda tentou Zero, "parece que não o usas..." "Não. Não te armes em esperto, fica onde estás e reduz-te à tua insignificância." Zero não teve outro remédio senão manter-se um zero à esquerda, alimentando a remota esperança de um dia passar para o lado direito do Um, e Um continuou em pé, embevecido consigo próprio, mas agora de olho muito mais atento, pois já não estava sozinho e, mais do que nunca, haveria que manter tudo no seu devido lugar.
            Toc, toc, toc. "Mas que raio, isto agora tornou-se um hábito. Espero que não seja outro zero, já me basta um," vociferou Um, furibundo. Toc, toc, toc. "O que será desta vez, uma pessoa já não consegue ser única neste mundo? Tem de vir sempre alguém infernizar-nos a vida! De que estás à espera, Zero, vai lá abrir, se estás aqui tens de servir para alguma coisa." "Mas eu não tenho braços nem pernas, como vou abrir a porta?", retorquiu Zero. "Desenrasca-te, também só tenho uma perna." Por artes que são difíceis de adivinhar e ainda mais difíceis de descrever, Zero rebolou até junto da porta e lá a conseguiu abrir, levando de chofre com um sopro de ar gelado, que quase o fez retroceder. "Quem é, Zero?", perguntou Um. "Não sei, não vejo ninguém", respondeu Zero. "Não brinques comigo, tem de ser alguém, ouvi bem o toc, toc, toc. Enxerga melhor à tua volta, seu cegueta", insistiu Um. "Já enxerguei e continuo sem ver ninguém. Deve ser alguém invisível." "Invisível? Isso é impossível. Pergunta quem está aí e como se chama." "Já perguntei, mas só pode ser mesmo invisível, estou com a sensação de que alguém entrou, só que não vi nada." "Alguém entrou?..." "Sim, e diz que se chama Menosum", concluiu Zero, lançando um largo sorriso com a boca que não tinha.
            Quando Zero voltou a entrar, já não viu Um, nem no lado esquerdo do sofá nem em lado algum. Desapareceu sem deixar rasto e nunca mais se soube dele. A partir de agora, seriam dois zeros a habitar aquela pequena casa, um do lado esquerdo e outro do lado direito, ou vice-versa. Não se sabe, também, como é que os dois zeros, roliços, sem braços e sem pernas, conseguiram trepar e aconchegar-se naquele sofá exíguo. E também não se sabe, porque não havia mais ninguém no mundo para o contar, quanto tempo ficaram ali, ambos fazendo companhia um ao outro. Sabe-se apenas que eram dois zeros, como poderiam ser muitos mais, mas que valiam o tudo e o nada ao mesmo tempo.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

ESTE RUÍDO


Trago este ruído há tanto tempo entranhado que já faz parte de mim. Provavelmente, nasceu comigo, ou talvez seja gerado pelo funcionamento do meu corpo, ou, quem sabe, seja a voz do meu próprio destino. Ou, então, nem é um ruído, mas sim um silêncio inquieto, próprio dos seres amargurados, daqueles que não têm parança, que foram privados de uma vida de sossego. Há cerca de duas semanas que anunciei ao meu marido que me quero separar dele. Resolvi pôr termo a trinta anos de amargura, acabar com uma vida de submissão a um homem que nunca me soube amar. O nosso filho cresceu, tem a sua vida e já nada me pode impedir de seguir o meu próprio caminho. Amo-o com todas as forças com que uma mãe pode amar, mas não gostaria de falar muito dele. Foi a única coisa boa que Mário me deu e, falar dele, poderia fazer com que me arrependesse. Se aguentei quase três décadas de martírio foi pelo meu filho, foi para que ele sofresse o menos possível. Reservei o sofrimento só para mim, fiz do meu corpo um objecto de fúria, amparei com a minha própria carne os golpes que muitas vezes se dirigiam a ele, mas julgo que nada foi em vão, que tudo tem um propósito. O medo que me tolheu uma vida inteira é o tónico que me faz prosseguir. Porém, para lá desta vontade de querer finalmente ser feliz, ainda resta este ruído, ou zuído, não sei bem distinguir. Ultimamente, tenho-o sentido mais intenso, mais vivo, qualquer coisa como um "tchuimmm, tchuimmm, tchuimmm", um brunir de aço contra aço, um frenesim agourento.
Mário encontra-se nas cortes do gado. Desde que soube da minha intenção que, todos os dias, assim que chega do trabalho, se fecha junto com as galinhas, os coelhos, os porcos, que dorme com as ratazanas. Anda a magicar uma forma de me fazer recuar, como muitas vezes aconteceu. Quantas vezes voltou, feito cordeirinho, pedindo-me desculpa por tudo aquilo que era, fingindo-se arrependido, e que nada seria como dantes, que era um novo homem, pronto a fazer de mim a mulher mais feliz deste mundo. Mas se tão depressa despia a pele de lobo mais depressa a tornava a vestir, obrigando-me a viver numa constante incerteza, a não acreditar nele, a não acreditar sequer em mim mesma. Foram demasiadas as vezes que desejei a morte, que a tentei através das lâminas que me lancetaram a carne, que a desafiei com os venenos que me causticaram as entranhas. Tantos foram os momentos de suplício, tantas foram as horas de agonia, tal foi o inferno em que vivi, que tudo se tornou indiferente, até o medo. A partir de agora, acabaram as palavras como "sua puta" ou "sua cabra", terminaram as ofensas e a humilhação, já não há punho fechado nem gume de faca que me possa fazer mal. Ele está ali fechado, qual animal ferido, a ruminar nas suas incertezas, a alimentar a sua ira para comigo e para com o resto do mundo. Sei que está a afiar as duas facas que usa para matar os porcos, que talvez seja esse o ruído que há tanto tempo se entranhou em mim. Mas agora tudo isso deixou de importar. A minha vida seguirá em frente, a caminho da felicidade, mesmo que esta não exista, mesmo que, na ânsia de a atingir, eu tenha de ir além da minha própria morte.
Estamos em finais de Junho. Os dias, ultimamente, parecem andar mais felizes. Lá fora, ouve-se o chilrear dos pardais da rua, enquanto saltitam nervosos entre os beirais e a pérgula dos maracujás. Apanhar os maracujás, cortá-los a meio e sorver aquele suco ácido e delicioso, logo pela manhã, faz-me o resto do dia mais alegre; é a única coisa que me deixará boas recordações desta casa, onde passei mais de vinte anos da minha vida. Tenho de embalar as minhas coisas, as poucas coisas que vou levar para a minha nova casa; são roupas e alguns objectos pessoais. Levo poucas roupas, apenas aquelas que mais gosto, a maioria delas foram compradas ao gosto de Mário e não me deixam saudades. A partir de agora quero ser eu própria, sentindo-me bem no meu corpo, vestindo apenas aquilo que eu gosto.
A minha nova casa é pequena; um segundo andar independente, com um quarto, sala e kitchenette, o suficiente para mim e para receber o meu filho e a minha família. Tem alguma mobília e, amanhã, já estarei instalada. O meu irmão, Francisco, chegou de África e vai visitar-me em breve, como faz todas as vezes que volta. Desta vez vou recebê-lo na minha própria casinha, sem os olhares perniciosos do meu marido. Os seus sentimentos de posse levam-no a ter ciúmes até do próprio cunhado. Das últimas vezes que Francisco esteve cá mal nos vimos, mas agora tudo vai ser diferente. Haverá tempo para conversar, recordarmos momentos da nossa infância, ele poderá contar novidades da sua vida, contar as suas aventuras por África, poderemos rir e chorar juntos como os irmãos devem fazer. Eu não lhe contarei grande coisa da minha vida, é demasiado triste para ser contada; dir-lhe-ei apenas que tudo está bem e ele compreenderá. Depois, lançará aquele seu sorriso terno e apaziguador, antes de partir novamente.
Os raios de sol entram pela janela, radiosos. Fazem-me meiguices no cocuruto da cabeça, como se, até eles, estivessem felizes por este meu reinicio de vida. Hoje, é o primeiro dia na minha nova casa. As paredes foram pintadas de fresco, são brancas e brilham tanto como os raios de sol. Sinto o cheiro a tinta, sinto todos os cheiros, mesmo os mais antigos, como se todos fossem novos para mim. Já arrumei tudo no seu devido lugar. A caixinha de madeira, que Francisco me ofereceu quando fiz trinta e dois anos, está em cima da mesinha de cabeceira. Lembro-me tão bem desse dia:
"Toma!", disse, ele, enquanto me repenicava dois beijos em cada face. "É pequenina, mas leva tudo o que tu quiseres pôr dentro dela, até essa enorme tristeza que tentas esconder de toda a gente."
"Tristeza! Qual tristeza? Estou tão feliz por estares cá. Ainda mais se viesses de vez."
Ele calou-se, apenas porque não tinha resposta, como não teve durante os largos anos que se seguiram. Olho novamente a caixinha. Dentro dela, guardei apenas as boas recordações. Na tampa vêem-se pequenas gravuras de mulheres africanas, lado a lado. São as mulheres de Francisco, como eu costumo dizer. Esta parte das mulheres, ele nunca me contou, mas sei que teve muitas e imagino que as tenha feito felizes. Tenho inveja das mulheres de Francisco, sei que as amou e foi amado, porque, ao contrário de Mário, tem muito amor dentro dele. Mário só carrega ódio e ressentimento. Mesmo as galinhas, os coelhos, os porcos, as ratazanas, não são tão bichos como ele, não descem à sua irracionalidade. Mário continua na corte do gado, mas nem os bichos lhe querem fazer companhia. Resta-lhe a sua própria solidão, e as duas facas com que julga aniquilar a sua condição de homem rejeitado. Imagino-o, agora, a passar os dedos pelos gumes das facas, a embrulhá-las num pano branco, como faz antes de matar os porcos, e a colocá-las entre o cinto das calças. Sei que me quer matar, que provavelmente o fará, mas não quero pensar nisso. Prefiro pensar que tudo aquilo que me espera nunca será pior do que tudo aquilo que me deixou.
É o primeiro dia em que, ao fim de tantos anos, me sinto finalmente mulher. O ruído começa agora a ficar cada vez mais acutilante, mais ardente. Desliza pelas veias e pelas artérias, pela medula dos ossos, como minúsculas serpentes venenosas, até se alojar em todos os recantos do meu ser. Ouço passos a subirem pelas escadas. Uma escada de um só lanço, estreita e íngreme, que fica na fachada lateral da casa. Alguém bate à porta, sem nada dizer. Sei que é Mário, sinto-lhe o cheiro, ouço o seu respirar. Abro a porta e ele entra. O seu olhar é baço, estático, sem vida; são olhos de um cego que não quer ver. Mário não me vê, não vê a sua mulher, não vê uma mulher, vê um ponto branco no meio da sua escuridão, é o cimo do poço que jamais conseguirá alcançar. Mário tira as facas da cintura e cruza as lâminas uma na outra. "Tchuimmm, tchuimmm, tchuimmm." Percebo, agora, a razão deste ruído, que há muito tempo não me larga. Subitamente, algo explode dentro de mim; um ardor intenso na barriga, no peito, no pescoço. O chão escapa-me dos pés, a casa roda sobre mim. Do fundo da garganta, vem um líquido viscoso, desliza pela língua, escorrega pelos cantos dos lábios; é ácido e doce ao mesmo tempo, como o suco dos maracujás. Deito os olhos ao céu, os raios de sol continuam radiosos, uma luz branca turva-me o olhar, reflectida por todas as paredes brancas da casa.
Gosto dos dias alegres e claros, mas quando eu morrer não quero sol. Para onde vou não preciso do sol, nem da luz. No dia do meu funeral prefiro que chova, que chova muito. A água alimenta a terra que me dará abrigo. Também gosto da chuva. Gosto dela porque, assim que se cansa da negridão das nuvens, decide cair, e nada nem ninguém neste mundo, alguma vez o poderá evitar.

SONHAR


A janela é pequena, talvez um pouco maior que um livro, mas é ali que cabem os olhos grandes de Maria. Ela não gosta dos seus olhos, não se entende a si própria, mas entende o que vê para lá da janela. Para lá da janela há a planície, que não chega tão longe quanto o olhar de Maria. É uma planície dourada, de ervas secas e rasas, tão macia como o cobertor de papa que lhe cobre os joelhos. E, no meio da planície, recortada no fundo claro do céu, vê-se uma árvore em contraluz, que mais parece um chapéu de chuva aberto, quando o vento o vira ao contrário.

    Durante o dia, Maria observa. Ela vê a árvore na planície, vê os pontos negros dos pássaros a saracotearem-lhe por cima, vê a sombra do rebanho a passar-lhe por baixo, por vezes vê a silhueta do pastor a gesticular o cajado, e do cão a correr atrás das ovelhas. Maria não houve o chilrear dos pássaros, nem o balir das ovelhas, nem o ladrar do cão, nem os assobios do pastor. Maria vê, somente. Maria não ouve, Maria não fala, Maria não anda, mas Maria sonha.

     Sonha durante a noite. Invariavelmente, noite após noite, Maria tem o mesmo sonho; ela quer ser como a árvore no meio da planície. Não quer voar como os bandos de pássaros, não quer vaguear como o rebanho, nem, tão pouco, ser como o vento que agita a folhagem. Maria quer, tão só, ser a árvore cravada na terra, entre a erva seca e rasa. A árvore não sonha, não precisa de o fazer porque, apesar de ser uma árvore solitária, ela não se sente só. A árvore vive em comunhão com toda a planície; dá repouso aos pássaros, permite sombra aos rebanhos, sente o carinho do vento e desfruta do calor do sol. Ao contrário de Maria, a árvore não vê, mas gosta de si própria; do seu tronco redondo e alto, dos ramos finos como varetas e da copa densa e abaulada. Se a árvore visse, saberia que naquela casa ao fundo da planície, com uma pequena janela, vive uma menina de olhos grandes, que passa os dias sentada numa cadeira, embrulhada num cobertor de papa, e a sonhar com um mundo que não lhe pertence.
    Sonhar é entrarmos dentro da nossa própria solidão, é irmos ao fundo de nós e vermo-nos lá fora, através de uma pequena janela. É virarmo-nos do avesso, tal como o vento vira o chapéu de chuva: pensa Maria. Se eu fosse a árvore poderia ser também o mundo onde ela habita. Deixaria de ser esta casa vazia e escura, onde os dias passam tão sós que me parecem viver ao contrário.

domingo, 17 de abril de 2016

OS QUATRO CHIFRES DO DEMÓNIO

Cap. IV

Quando transpus a porta para o outro lado, constatei que tinha acabado de entrar na biblioteca. As estantes de madeira, pintadas em cores claras, confundiam-se com as paredes, que pareciam forradas num papel de padrões coloridos e geométricos, devido às cores diversas das lombadas dos livros, dispostos de uma forma arrumada e limpa, ao correr das prateleiras. Suspenso, sobre a minha cabeça, como uma aranha transparente, um lustre de cristal sustentava um anel de pequenos sois cintilantes. Mais ao fundo, sobre uma robusta mesa de leitura, com um tampo polido em tons de ébano e pernas arqueadas como as de um fauno, repousavam meia dúzia de livros, alguns papeis dispersos, um telefone e um cinzeiro em vidro, vazio e limpo. Ao contrário do salão nobre, ali sentia-se que o mundo preferia manter o enigma das coisas vivas. Lembrei-me que tinha lido algures, que os livros eternizam a vida dentro deles, porque conservam um bocadinho de cada uma das almas que os lê. Não sei se seria assim, mas a verdade é que, naquela sala, havia algo de muito forte a impor a sua presença. Também não sei se essa presença vinha dos livros, ou dos objetos, ou da própria casa e da história que ela contava, ou, até, se eu me estava a deixar levar por alguma fantasia momentânea, própria dos desatinos criadores. O que sei é que, aquele espaço, com ar arrumado e luminoso, se teria de ser dominado por alguma alma, não o seria com certeza pela sinistra viúva. E foi quando, subitamente, senti um leve suspirar nas minhas costas, o que me provocou um calafrio, mais pelo efeito de surpresa do que pelo susto. Depois, a minha racionalidade voltou à tona e levou-me a pensar que se tratava de minha mãe.

“Então? Já acordaste?” Reagi.”

“Se já acordei? Estou acordada desde há tanto tempo que nem o dia se lembrava ainda de nascer.”

Reconheci, de imediato, que não era quem eu pensava. A voz era feminina, doce como a de minha mãe, mas mais timbrada e resoluta. E quando me virei, lá estava aquela figura, esguia e sensual, com a perna esquerda a cruzar sobre a direita, o corpo ligeiramente reclinado, e com ambas as mãos apoiadas na ombreira da porta, onde pousava o rosto e escondia o olhar, por baixo de uns cabelos longos e ondulados. Durante alguns momentos, aquelas duas órbitras de sombra fulminaram-me, emanando um enigmático encantamento, o que me roubou as palavras e me fez paralisar. Então, após desfazer a posse, dirigiu-se a mim com dois passos largos, e a mão direita em riste para me cumprimentar.

“Olá. Sou a Joana. Joana Aragão, a neta...”

“…E tu? Deves ser o Africano. Ou o menino da mamã, pelo que me consta.” Arriscou, com um esgar sorridente, enquanto apertávamos as mãos. Senti-lhe a pele tépida e suave, e apeteceu-me prolongar o cumprimento, mantendo-lhe a mão apertada durante algum tempo, o que ela não recusou.

“Francisco Boaventura, o Africano, tal como dizes.” Assenti. “E a ti, como te posso chamar? Joana? Ou Joaninha, a menina da vovó?”

“Podes-me tratar por Janis, como todos os meus amigos. E estou muito longe de ser a menina da avó, essa beata velha, posso garantir.” Respondeu com um semblante mais sério, retirando a mão de dentro da minha.

“Não duvido.” Assegurei. “E será que ouvi bem? Janis?..de Janis Joplin?”

“Em cheio, Africano espertinho. Parece que afinal sempre conheces o mundo, para além da selva.” Respondeu, irónica.

Foi então que deu meia volta e me virou as costas, para se afastar num andar ostensivo e provocador. Por baixo de uns jeans boca-de-sino, muito justos nas ancas, e de uma blusa larga, em tons de marrom, meio transparente, toda a voluptuosidade daquele corpo de mulher, lânguido e esguio, se insinuou perante o meu estupidificado olhar de macho, sujeito à tentação. Enquanto caminhava até á mesa de leitura, cada passo que dava realçava-lhe os contornos femininos, como se fosse um bailado de formas, a desenvolver-se desde a linha interior das coxas, cruzando-se com a curva das nádegas, até explodir nos confins do meu cérebro. Assim que se sentou, naquela poltrona de couro pardacento, lançou-me novamente o seu olhar, intenso e penetrante, como se me estivesse a ver por dentro, como se aquele olhar fosse um bando de pássaros negros a pousar sobre uma árvore nua, exposta a uma tempestade.

Então, puxou uma das gavetas, pegou num maço Negritas, já aberto, de onde fez deslizar um cigarro, que lançou nos lábios com um gesto rápido e preciso. Fez todos estes gestos sem descolar os seus olhos dos meus, sempre com um sorriso malicioso, tendo a noção exacta dos efeitos que a sua atitude provocatória me estava a causar. Eu sabia perfeitamente que ela me estava a testar, como só as mulheres sabem fazer, e mantinha-me imperturbável, a tentar demonstrar uma certa indiferença. Mas a indiferença é sempre uma estratégia de risco, que pode passar de mel a fel e vice-versa, e que se deve abandonar na altura certa. Foi quando meti a mão ao bolso, para pegar no isqueiro e lhe oferecer lume. Só que, quando ela se debruçou para se aproximar do isqueiro, e levantou a mão esquerda para puxar a farta e escura cabeleira para trás da nuca, o movimento do braço fez com que o largo decote da blusa se abrisse um pouco mais, o suficiente para lhe revelar o contorno dos seios, cândidos e roliços, como dois montículos de neve, coroados com uma auréola de bronze. Se até ali tinha sido um tormento manter o decoro, agora passava a ser uma tortura. Por momentos, apeteceu-me enlouquecer, meter a mão pelo decote e acariciar, com a ponta dos dedos, aqueles dois carocinhos de carne, mordiscá-los até que eles se retesassem de prazer e me suplicassem por mais. Ocorreu-me que a loucura é como a corda de um alpinista; se a usarmos corremos o risco cair, e se não tivermos a audácia de a usar, também nunca chegaremos ao cimo da montanha. E a verdade é que não tive essa audácia, e fiquei-me nas cordas. Para disfarçar o embaraço, desviei o olhar para a parede, por detrás da poltrona, onde estava pendurado um quadro da já referida Janis Joplin. Joana, ou melhor Janis, sem largar o seu sorriso malandro, chegou a ponta do cigarro ao lume do isqueiro, recostou-se para trás, traçou as longas pernas, firmes e torneadas, e lançou duas baforadas na minha direcção.

“Fumas?”

Ainda debaixo da excitação que aqueles últimos minutos me provocaram, retomei atrapalhadamente a compostura, como se nada se tivesse passado, e respondi:

“Depende. Não em recintos fechados.”  

“Mas que menino atinado me saíste!” Ironizou.

“Sabes, desde muito pequena que adoro Janis Joplin. É o meu ídolo. Uma deusa, que me acompanha e acompanhará enquanto eu pertencer a este malvado mundo dos vivos.”

 “Ter ídolos, vivos ou mortos, pode não ser mau de todo, desde que eles se mantenham no céu e nós na terra.” Argumentei. “Mas, mesmo vindo da selva, consigo ver que não és do género de resignar, tal como fez o teu ídolo. É que de resignações está o inferno cheio, e pelo que pude constatar, durante o dia de hoje, desse mal nem esta miserável terra se livra.”

“Obrigado pelo elogio. No que me diz respeito, podes ficar tranquilo, gosto demasiado da vida para a deitar cano abaixo. No entanto, reconheço que tens alguma razão, em relação à Janis. Julgo que nunca se saberá se o fez por excesso de lucidez ou de loucura, e a loucura leva sempre á resignação. Para se ser idolatrado é preciso ser louco, e isso tem os seus custos.”

“Provavelmente.” Admiti.

“Relativamente ao Tozé, tenho as minhas sérias dúvidas, porque o conhecia demasiado bem”

Percebi que se estava a referir ao António José, o jovem enforcado, daquele dia.

“Não era tolo nem sábio, nem louco nem esclarecido, era o mais comum dos mortais, como todos nós somos. Eu nunca compreendi essa ideia repentina dele de querer ser acólito, e de casar pela igreja, mas penso que viu nisso a única forma de se aproximar da filha do sacristão; a Ana Maria, a noiva, ou a Mata Noivos, como eu lhe costumo chamar, e por quem ele se apaixonou. Enfim, tinha os seus sonhos, os seus anseios e angústias também, mas era isso que o fazia andar. Duvido muito…ou por outra, não duvido, tenho a certeza que nada o levaria a cometer tamanha loucura.”

“Então, achas que ele não se suicidou?” Indaguei.

“Não sei…não sei mas vou descobrir. Ninguém me tira da cabeça que essa falsa santinha, que essa fingida da noiva, não tenha nada a ver com isto.”

Entretanto, após uma curta pausa, Janis descruzou as pernas de cima da mesa e torceu o tronco, o suficiente para lançar o olhar na direcção da janela.

“ Estás a ver aquele cruzeiro lá fora?”

“Sim, estou. Passei por lá há pouco, antes de entrar nesta casa.”

“E viste a coroa de flores?”

“Claro que vi. Para além de uma lamparina e de umas marcas com algarismos, o que achei estranho e algo sinistro.”

“Pois põe sinistro nisso. Foi ali que o primeiro morreu.”

“O primeiro?” Suspirei, incrédulo.

“Sim, o primeiro namorado da Ana Maria. Nas últimas grandes cheias, apareceu ali com um pé preso na argola de ferro onde estão penduradas as flores. Foi encontrado mais podre que uma abóbora, depois do nível das águas ter baixado e de toda a vila o ter procurado, durante dias a fio. Na altura, toda a gente afirmou que se tinha matado e foi assim que o caso foi encerrado. Nem a uma única badalada de sino, aquela alma teve direito.”

“De facto, não deixa de ser intrigante!” Observei.

“Como vês, já existem antecedentes e tenho todas as razões e mais algumas para suspeitar dessa nossa queridinha Mata Noivos. Há muita coisa ainda por explicar.”  

 Declarou, com um ar circunspecto, expelindo uma baforada de raiva, enquanto esmagava a beata do cigarro no fundo do cinzeiro.

“E tu, meu menino da mamã, tem cuidado com estas beatas cá da terra, sejam velhas ou novas. São piores que o mosquito, mordem pela surra e quando dás por ela já estás contaminado e sem salvação. Principalmente, não vás na cantiga da velha beata aqui da casa, nem tu nem a tua mãe. Ou então, daqui a pouco não fazem outra coisa senão andar a lavar o rabinho do padre Clementino com água-de-colónia.”

“Não! Claro que não.” Balbuciei, demasiado crédulo, só porque não me ocorreu mais nada para dizer.

“Mas já vi que não morres de amores pela tua avó.”

“Quem vai morrer de amores por uma víbora dessas? Ela no seu cantinho e eu no meu, e é assim que deve ser.”

Reparei que não pretendia falar sobre o assunto. Mesmo assim, ainda acrescentou:

“Mas não te preocupes, são assuntos nossos. Apesar de tudo, para além de falar pelo cotovelos, não deixa de ter algumas coisas boas. Se tens intenções de continuar por aqui, e levares uma vida tranquila, só tens de cumprir estes três mandamentos: Não seres comunista, ires á missa todos os Domingos e cortares esse cabelo.” Rematou, lançando uma gargalhada.

Então, levantou-se de repente e chegou-se a mim, colocando os seus olhos de âmbar à altura dos meus. A sua respiração entrou por mim como se fosse a minha, senti o ardume do seu corpo a queimar-me por dentro e todo eu estremeci, não conseguindo disfarçar a excitação, novamente.

“Que achas do amor livre?” Sussurrou, apanhando-me desprevenido, fazendo-me recuar até assentar as nádegas no bordo da mesa, quase ao ponto de me desequilibrar.

“Todo o amor é livre. Que eu saiba ninguém pode proibir ninguém de amar.” Consegui retorquir, mesmo assim.

“Não estou a falar desse amor. Não falo de romance. Refiro-me ao amor carnal, ao sexo. Imagino que saibas o que isso é.”

Insistiu, enquanto me empurrava para trás com os dedos da mão direita enfiados entre os botões da minha camisa, arrepanhando-me os cabelos do peito e encaixando-se em mim. Os jeans, demasiado justos, realçavam-lhe a fenda do sexo, fazendo-me sentir como se estivesse a sobrevoar um vale entre duas montanhas. Ao aperceber-se do chumaço entre as minhas pernas, aquele animal bravio, fez questão de me enlouquecer ainda mais, pressionando a zona da púbis contra o volume do meu pénis entesoado. Eu termia, não de frio mas de raiva e desespero. Raiva por saber que ela se estava a divertir á minha custa, sem sequer me ter convidado, e que tudo não passava de um engodo, de um ardil feminino, com o único propósito de me levar ao limite. Desespero, por não poder entrar naquele jogo; porque não me saía da cabeça que a minha mãe e a velha estavam ali ao lado, e porque tinha a noção de que, assim que tivesse o primeiro gesto de audácia, assim que tivesse a coragem de fraquejar, tudo se esfumaria. Porque as mulheres são mesmo assim; picam o boi, e quando o boi se vira para lhes fazer frente, em vez de o pegar fogem com o rabinho entre pernas. Fazendo força com as mãos atrás das costas, arrastei o rabo pela mesa e afastei-me ligeiramente.

“Acho que… cada coisa no seu lugar…tudo no seu devido tempo.” Gaguejei.

“És mesmo atinadinho. Mas gostei de ti. Um dia destes vou descobrir esse teu lado selvagem.” Segredou-me, com os seus lábios, húmidos e redondos, quase a roçarem os meus.

De seguida, sem que eu tivesse tempo de reagir, recuou e saiu porta fora, deixando-me estatelado em cima da mesa, de costas que nem uma barata tonta.

Ainda consegui pigarrear uma resposta, mas já nem as paredes me ouviram.

“Não duvido, menina Janis...”

Quando me recompus, depois de me ter tentado levantar sem deitar nada ao chão, já a luz do crepúsculo deslizava, silenciosa, pela abóboda negra da noite. Durante largos momentos, não consegui raciocinar devidamente sobre o que tinha acontecido naquela sala. Aliás, nem sobre o que tinha acontecido ali, nem naquele casarão, nem desde que chegáramos aquela povoação. A verdade é que, para uma terra pequena e pacata, como minha mãe tanto gostava de apregoar, já me parecia haver demasiada emoção. Não tanto por causa daquela cena teatral de Janis, e pela sua atitude de gata assanhada, mas mais por tudo aquilo que ela disse. Se, por um lado, Janis se revelou um ser destravado, muito para além do seu tempo, por outro, pareceu-me alguém com uma grande maturidade e muito firme nas suas ideias, e foi isso o que mais me fascinou. Não porque a imagem daquele corpo, quente e libidinoso, não deixasse de me espicaçar o cérebro, ou porque eu menosprezasse os assuntos da carne, relativamente aos do espírito. Tal como meu pai, também eu começava a apreciar, com todo o entusiasmo, os atributos femininos, e a aprender que, muitas vezes, não se pode ir ao pote com demasiada sofreguidão. Por isso sentia-me bem comigo mesmo, por saber que, se eu a Janis tivéssemos ido mais além, seria com certeza o fim sem sequer ter havido princípio. E como as ânsias do corpo são sempre mais fáceis de solucionar do que todas as outras, haveria que dar tempo ao tempo, porque novas oportunidades surgiriam.

A chuva tinha parado, deixando apenas umas finas agulhas de água a escorrer pelas vidraças. Espreitei por entre os pesados cortinados de veludo, em tons de pérola. Lá fora, no lado oposto da praça, vislumbrava-se a sombra de um candeeiro de parede, a despejar um pálido e tímido cone de luz. O cruzeiro de pedra dissimulava-se na penumbra da noite, com as suas negras marcas dos anos. A lamparina tinha soçobrado perante a chuva, tal como a coroa de flores perante a mágoa. Agora, depois do que Janis me contara, podia compreender melhor o significado daqueles sinais. O cruzeiro era a memória viva das trágicas inundações com que o tempo se habituara a brindar aquela terra, e nada melhor do que uma cruz para simbolizar a fatalidade. A última grande cheia tinha sido em 1975, tinham-se passado dois anos. O nível das águas quase que submergira a totalidade do cruzeiro, conforme indicava aquela linha preta, gravada na pedra. Calculei, pela sua altura, que toda a zona baixa de Valdágua teria ficado inundada, que todas as casas periféricas da praça teriam ficado submersas e que só o primeiro andar do casarão, deveria ter escapado á devastação das águas. De facto, não deve ter sido por acaso que o criador deste mundo escolheu, como sítio para viver, o céu e não a terra. É que o mal quando chega vem sempre por baixo, como um bicho rastejante.

Olhei mais uma vez para o cruzeiro e pensei que não deixava de ser irónico alguém morrer amarrado a uma cruz, tal como morreu Cristo, para, de seguida, ser renegado. Lembrei-me, também, daquele corpo acabado de descer á terra fria, mas que não era mais fria do que as terras abençoadas. Duas almas párias, ambas unidas pelo amor que tiveram á mesma mulher, um amor que, provavelmente, lhes traçou o destino.

Naquele dia em que, eu e minha mãe chegámos, os sinos não tocaram. Deus refugiara-se num profundo silêncio. Pensei que o silêncio é um recurso inesgotável, que nunca deixa de marcar comparência perante os mais necessitados e que poderia muito bem ser a última bênção das almas resignadas.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

OS QUATRO CHIFRES DO DEMÓNIO - CAP I


Chegámos à vila precisamente na hora do enterro. A tarde, naqueles primeiros dias de Março, deixava-se humedecer numa morrinha soturna e fria, quase gelada. O comboio foi refreando a marcha num guinchar de aço contra aço, até que, após um frémito brusco, estancou; como um cavalo exausto a aguardar o apear do cavaleiro. Enquanto retirava as malas da bagageira, olhei através dos vidros sujos das janelas e vi a guarita do velho apeadeiro, mostrando a sua decadência. O salitre trepava pelas paredes, comendo-lhes a cal e o barro, desenhando mapas de um mundo desconhecido. Sobre a parede lateral, um painel de azulejos amarelecidos, ostentava o nome da povoação, escrito em letras azuis, já num tom desmaiado: “Vale de Água”. Ao longo da gare, um muro de alvenaria alvacenta exibia os sinais da revolução, onde se destacava uma anafada figura, a fumar um charuto, de cartola na cabeça, e a ser decapitado por uma enorme foice (cruzada com um martelo), desenhados num vermelho sanguíneo. Por baixo da funesta figura consegui ler: “Fora com os capitalistas” e “Morte ao fascismo”.

Eramos os únicos passageiros a desembarcar. A guarda da passagem de nível mantinha-se de bandeirola vermelha no ar. Era uma silhueta estranha, com a forma de um pino de bowling, parecendo envolvida num invólucro transparente que a confundia com o ar pesado da tarde, e a tornava quase invisível. Atabalhoadamente, eu e minha mãe, descarregámos a bagagem sobre as lajetas do cais, dilaceradas pelo alastrar das ervas daninhas. A guarda baixou a bandeirola e o comboio deslizou sobre os carris, franqueando-nos a vista. Foi então que deparámos com aquele manto escuro de gente, barrado pela cancela de cantoneiras metálicas, pintadas a vermelho e branco. Uma urna parecia boiar sobre os olhares tristes, como se ninguém lhe pegasse, como se uma força estranha lhe não permitisse já algum contato com qualquer sinal de vida. A tenebrosa caixa negra, banhada num lustre preto e dourado, lançava lampejos púrpuros, num ritmo intercalado, acompanhando o piscar luminoso dos semáforos e o retinir das campainhas. Quando aquele monstro de ferro se sumiu na primeira curva da via-férrea, o pisca-pisca apagou-se e o tlim-tlim-tlim deixou de se ouvir. A cancela desimpediu a passagem e o funeral retomou a marcha, deslizando como uma sombra silenciosa, rente ao chão de asfalto húmido.

“Que estranho! Um funeral sem padre. Não reparaste?” Disse minha mãe, subitamente, apanhando-me desprevenido, ainda a olhar ao longe o gingar da última carruagem sobre o polido luzidio dos carris.

“Eu, não! Reparaste tu, porque estás viva. De certeza que o morto não se vai preocupar com tal pormenor.” Respondi.

“Querido, só não fico chocada porque sou tua mãe e conheço-te muito bem.”

Continuou ela, não digo indignada mas talvez algo inquisidora, dando-me a sensação de que se calou a matutar no assunto. De seguida, pegou nas malas e virou-me as costas, pondo-se ao caminho.

“Vamos, estou sem pachorra para o teu humor negro.”

Mais adiante parou, junto ao pino de bowling.

“Boa tarde. Por favor, sabe-me dizer onde fica a praça do Cruzeiro? Perguntou, afavelmente, parecendo-me que só lhe fez a pergunta para não parecer antipática.

Peguei também nas minhas coisas e segui-a. Em silêncio, a mulher apontou a bandeirola para o outro lado da linha, no sentido oposto ao que seguiu o funeral. A minha mãe (a partir de agora chamar-lhe-ei apenas mãe por achar desnecessário estar sempre a repetir que é minha) retomou o passo decidida. Partiu daquela terra, há muitos anos atrás, quando era criança, e ainda tinha uma vaga ideia do trajeto a seguir até à casa da viúva Matilde, onde iriamos ficar. Seguimos os dois por um caminho de pedra rolada, tornando-se penosa a caminhada, devido ao piso irregular e à imensa bagagem. Duas centenas de metros à frente parámos e a mãe voltou à carga:

“Sabes, meu querido, a partir de agora tens de ter alguma ponderação com certas coisas que dizes. Não é por mim, que te tolero tudo, mas estamos numa terra pequena, de gente católica, e, por vezes, podes ferir algumas suscetibilidades.”

“Deves estar a brincar comigo! Nem tu nem ninguém me irá impedir de dizer o que penso. E pelo que ouvi contar a censura já acabou há alguns anos atrás…”

Retorqui, levantando-me de cima da mala onde estava sentado e olhando á minha volta para disfarçar a irritação. As casas que ladeavam o caminho expunham-se na solidão amarga da tarde. Eram casas baixas e contíguas, com telhados cerâmicos enegrecidos pela invasão predadora dos fungos e líquenes; todas com fachadas caiadas num branco mortiço e com socos em tons de anil, carmim, por vezes ocre. Vi portas e janelas fechadas, e não senti vivalma. Pensei que, provavelmente, todos aqueles seres que as habitavam estariam no funeral, deixando nelas o mesmo pesar que carregaram consigo próprias. A morrinha tinha dado lugar a um chuvisco mais intenso e a humidade começava a moer a pele. Prosseguimos e retomei a conversa:

“…E também não fui eu que pedi para vir para este beco do mundo, medonho e triste! Já me sinto a definhar e ainda mal cheguei.”

“Até posso aceitar que reajas assim, mas sabes que não temos alternativa. És um jovem, a revolta e a irreverência ficam-te bem, mas, por agora, temos de aceitar esta oportunidade que nos dão.”

Continuou a mãe, já arquejada pelo peso das malas e pelas nossas conversas de sempre. Eu, sentindo-lhe o desânimo, tirei-lhe duas das malas, para a aliviar um pouco do esforço, e concluí:

“Vamos. Depois se vê. Sabes bem que só estou aqui por causa de ti!”

Finalmente chegámos à praça do Cruzeiro, que de praça só tinha o nome, pois não passava de um pequeno largo, onde, em pleno centro, se via uma tosca e retangular cruz de pedra. Sem grandes primores artísticos, erguia-se sobre um sopé quadrado, a formar três degraus; para onde atirei a carga que já me afadigava as costas, e onde me sentei enquanto esperava pela mãe, que se deixou atrasar. O antigo cruzeiro, pela sua simplicidade, nunca despertaria a atenção do turista mais curioso. No entanto algo incomum me fez reparar nele; sobre a superfície de pedra, já carcomida pelo tempo, a subir ao longo da sua coluna vertical, viam-se pequenas linhas pretas horizontais, que mais parecia estarmos perante uma régua graduada, mas com espaços irregulares. Levantei-me para ver com mais atenção. A seguir a cada uma das linhas havia a inscrição de quatro algarismos, correspondentes a anos diferentes. Reparei nos mais visíveis, que também eram os mais recentes; 1962, 1969, 1973, etc.; mas sem qualquer sequência ou correspondência entre eles. Mesmo no alto do cruzeiro (e convém dizer que este tinha, bem à vontade, cerca de quatro metros), ainda consegui ver o último traço, correspondente ao ano de 1979. Mas o mais curioso disto tudo foi quando contornei o cruzeiro; pendurado numa argola metálica, no lado oposto da coluna, havia uma coroa de flores já secas e esmorecidas. Mais abaixo, no sopé de pedra, uma lamparina de azeite irradiava uma luz trémula, resistindo ao fulgor da chuva.

Senti-me intrigado. Desde que chegara que só via sinais sinistros á minha volta e interroguei-me sobre o que estaria a fazer naquele local. Entretanto a mãe alcançou-me, arrastando as suas malas.

“Que estás a ver? Perguntou, exausta.

“Curiosidades.” Respondi, sem que ela desse importância ao assunto.

“Olha, querido! Deve ser a casa da Senhora Matilde. Pelas indicações que me deram, só pode ser aquela.” Disse entusiasmada, apontando na direção de um edifício de dois pisos, no outro extremo da praça.

“Ainda bem que finalmente chegámos, já não posso com uma gata pelo rabo.” Concluiu, com uma euforia refreada pelo cansaço.

Olhei o casarão com desprezo e mantive-me em silêncio. Um desprezo originado pela indiferença que me vinha consumindo a alma, desde que abandonáramos África. Vi-me perdido, num mundo reverso. Deitei os olhos ao céu e senti saudades do sol.