segunda-feira, 10 de setembro de 2018

FUI EU QUE GRAVEI TEU NOME


Os meus olhos abriram-se, sobressaltados. Uma mão macia pousou no meu ombro, despertando-me o corpo, meio empedernido. "Senhor! Sente-se mal?", alguém perguntou. "Precisa de alguma coisa? Sentado aí, com o rabo nesse banco frio, vai acabar por gelar." Um vulto sombrio tinha-se debruçado sobre mim, despejando um bafo, morno e azedado. Murmurei um leve agradecimento e respondi que não, que estava tudo bem. A mulher, pequena e larga, afastou-se vagarosamente, envergando uma bata cinzenta que lhe dava pelos tornozelos e uma bandeirola vermelha debaixo do braço. "Devo ter-me deixado dormir!", pensei. Na verdade, alguns minutos antes, depois de me ter apeado do comboio, decidi encostar-me um pouco no banco corrido do apeadeiro e, por breves momentos, fechei os olhos. A viagem tinha sido longa e, apesar do conforto do comboio e um sono leve me tenha embalado, sentia-me cansado. Aliás, não era propriamente um cansaço, era mais uma modorra, provocada pela inquietude que me consumiu durante toda a viagem, como se eu fosse uma criança, ansiosa por chegar ao seu destino. Tinha cerca de doze anos quando os meus pais me levaram dali, passaram-se quase quatro décadas, e certamente tudo o que me ligava àquela terra ter-se-ia dissipado entretanto. A minha família mais chegada também partira há muito, restando-me apenas um tio afastado e alguns amigos de infância, e com certeza já não nos reconheceríamos, se nos víssemos. Foi esse meu tio que me contactou, há alguns dias, por causa de um assunto que estaria por resolver, relacionado com uma pequena herança, razão pela qual me vi obrigado a fazer esta viagem.
            Estávamos em Março, num dia soturno, e a tarde insistia na mesma frieza da manhã. Deixei de ver a guarda da passagem de nível, que entrara dentro de um pequeno edifício de alvenaria caiada, situado no extremo do apeadeiro. De ambos os lados da linha férrea, viam-se os sinais luminosos apagados, e as cancelas metálicas abertas, pintadas de vermelho e branco. Os poucos passageiros que desembarcaram comigo já tinham debandado, como ratos regressados às tocas. A povoação recolhia-se no silêncio, entre cada paragem de comboio. Escutava-se apenas um leve burburinho vindo do pequeno café, à saída do apeadeiro. Ergui-me do banco frio de pedra e peguei na mala, com a intenção de procurar a casa de meu tio. Tinha prometido a mim mesmo que, assim que chegasse, iria de imediato tratar do que me tinha levado até ali e que não me levaria por certos apelos da memória. Mas não, primeiro, com a desculpa do cansaço, deixei-me ficar sentado naquele banco e, agora, por mais que os meus pés se quisessem mexer, parecia que algo me colava ao chão, como se uma matéria densa, metálica, tivesse subitamente preenchido todos os interstícios, todas as intermitências do meu corpo. A memória é uma crosta que se vai agarrando a nós, que só o tempo faz amadurecer até cair por si própria, tal como a casca do pinheiro se desliga um dia do seu tronco. Uma crosta que, ao longo de toda a nossa vida, provoca um prurido, e, se não a soubermos cuidar, se a tentarmos arrancar antes do seu tempo, sem estarmos preparados para tal, o risco da dor será sempre maior que o do alívio. Tinham passado quase 40 anos desde que estivera ali pela última vez, desde aquele fatídico domingo de Páscoa que me destroçou a existência e me fez partir, vergado pelo peso das minhas próprias recordações. E foram, talvez, essas recordações que me fizeram permanecer sobre a laje cimentada do cais, olhando desassossegado à minha volta, não resistindo à tentação de fincar as unhas naquele prurido, cada vez mais intenso, mesmo que isso me pudesse deixar em carne viva.
            O velho telheiro de madeira, cinzenta e estiolada, tinha dado lugar a uma construção de alvenaria branca. Sobre as paredes, sujas e descaliçadas, para além do placar com os horários dos comboios, viam-se alguns vestígios de cartazes eleitorais, um panfleto a anunciar as festas da freguesia e uns indecifráveis grafites, já quase sem cor. No lugar da antiga tábua, pintada a branco e com o nome da povoação em letras pretas e redondas, via-se agora um painel de azulejo empalidecido, orlado a azul e letras muito rectangulares, também azuis. O muro de pedra, paralelo à linha, que separava o apeadeiro do jardim, era agora um gradeamento metálico. O jardim onde existia uma palmeira velha, um canteiro de rosas brancas e as glória-da-manhã se abriam ao raiar do dia, passara a parque de estacionamento. Até mesmo o cheiro intenso do creosoto, vindo das sulipas de madeira, ou o aroma fresco das heras que trepavam o muro, tinham desaparecido, restando somente um incaracterístico odor a cimento e a cal. Aparentemente, nada restara do passado, e eu encontrava-me num mundo inverso desse passado.
            Só que nem tudo mudara; olhando mais atentamente, reparei que o banco, onde me sentara anteriormente, permanecia igual; corrido, robusto e sólido, com o assento e as costas em pedra. Foi naquele momento que a minha memória se avivou e me dirigi a uma das extremidades do banco, debruçando-me sobre ele. Estendi o braço, com os dedos trementes tacteei suavemente a superfície polida do calcário, tal como um cego quando lê a página de um livro, e lá estava, o único vestígio de um passado longínquo. Apesar da erosão do tempo, apesar do desgaste provocado pelos inúmeros corpos passageiros, ainda se podia sentir aquele coração sulcado na pedra, e, dentro dele, aqueles dois nomes: Mel e Romeu. Observei com atenção, durante mais algum tempo; era mesmo o meu nome. Sentei-me novamente e deixei-me ficar, com o corpo mais inerte do que o banco, e com um olhar profundamente desconcertado. Rodei a cabeça para a minha esquerda; um metro ao meu lado estava Tomé e entre nós os dois estava Mel. O mundo, à minha volta, recuava quarenta anos.
            Chamava-se Amélia mas tratávamo-la por Mel, não só pelo nome, mas porque toda ela se assemelhava a mel. Tinha cabelos cor de âmbar e os olhos, embora fossem castanho esverdeados, eram tão doces que, sempre que nos fitava, derretíamo-nos mais do que o próprio mel. Tomé era o meu melhor amigo e a vida um sem o outro não nos fazia o menor sentido. Nascemos e crescemos juntos, partilhámos a mesma escola e os mesmos professores, vivemos as mesmas aventuras, tivemos as mesmas angústias e as mesmas certezas, e acabámos ambos por amar a mesma pessoa pela primeira vez. Invariavelmente, todos os domingos, depois da missa, corríamos disparados até ao banco do apeadeiro e ficávamos ali, lado a lado, à espera que Mel chegasse e se sentasse no meio dos dois. Depois entretinhamo-nos a contar as carruagens dos infindáveis comboios de mercadorias, ou a observar, embevecidos, a passagem do sud-express a caminho de Paris, e a imaginar como seria ser estrangeiro e viajar naqueles compartimentos, que, segundo ouvíamos dizer, eram maiores e mais confortáveis do que as nossas próprias casas. Mesmo nos dias de semana, depois da escola, costumávamos ficar por ali a observar o movimento de quem vai e de quem chega: dos estudantes e dos empregados do comércio a caminho de Coimbra; das peixeiras vindas da Figueira; das vendedoras de queijadas, gordas e fala-barato; dos ferroviários a regressar do Entroncamento, fardados que nem uma castanha, boné enfiado até ao pescoço e lancheira de couro numa das mãos; dos carros de bois carregados de palha de milho, a aguardarem que a passagem de nível se abrisse. Aquele apeadeiro passou a ser o centro do nosso universo. Era ali que a terra terminava e começava o resto da nossa existência. Era ali o início de todos os nossos sonhos.
            "Qual é que é mais rica, Lisboa ou o Porto?", perguntava Tomé, enquanto eu e Mel nos mantínhamos calados. "É o Porto porque tem um rio de ouro, enquanto Lisboa só tem um braço de prata", respondia Tomé a si mesmo, lançando, de seguida, duas fortes gargalhadas. "E sabes que Lisboa tem um comboio que anda por baixo da terra, como uma toupeira?", retorquia eu. "E como sabes tu tal coisa? Por acaso já lá estiveste?", apressava-se Tomé a perguntar. "Claro que já lá estive; quando meu tio embarcou para o ultramar e nos fomos despedir dele. Lembro-me perfeitamente daquele barco gigante, carregado de tropas a acenarem-nos com lenços brancos, enquanto desaparecia por baixo da enorme ponte. Um dia, também hei-de viajar naquele barco. É um barco que vai a qualquer parte do mundo", dizia eu, com um certo ar triunfante. Mel olhava-me com alguma admiração, mas não se pronunciava, limitando-se a rodar a cabeça, conforme eu e Tomé íamos falando. "Um dia destes também vamos viajar, eu e a Mel. Vou levá-la ao Porto. Gosto mais do Porto. Vamos passear no rio Douro e depois vamos ver a Santa Maria da Adelaide", exclamava Tomé, enquanto fitava Mel, com os olhos negros e brilhantes, sob as duas sobrancelhas espessas e muito juntas, na espectativa de que ela rejubilasse com tamanha revelação. "Tens sonhos muito pequenos", dizia eu. "Quem é que leva a namorada a ver uma morta dentro dum caixão, que mais parece uma videira seca?" "Namorada? Namorada de quem?", suspirava Mel, num tom inocente. Tomé não acusava a desfeita e reagia de imediato, demonstrando a sua paixão por Mel, apressando-se a dizer, alto e em bom som, que a amava mais do que a todas as coisas, que sem ela preferia morrer. Depois, deslocava-se ao jardim, trazia uma rosa branca e oferecia-a a Mel, prostrando-se de joelhos em frente a ela. Mel colocava a rosa nos cabelos e sorria com aqueles lábios cheios e curvilíneos, repuxados para fora, como se tentasse soprar o sorriso para longe. Por vezes olhava-me de soslaio, disfarçadamente, com o seu ar sempre cândido e ambas as mãos espalmadas sobre o assento do banco, enquanto abanava as pernas nuas e muito finas. A partir de determinada altura, tanto para mim como para Tomé, tudo parecia girar em redor de Mel, tornando-se, até certo ponto, uma obsessão. Mas enquanto ele fazia questão de extravasar a sua felicidade, eu remetia-me ao silêncio, levado, por um lado, pela minha timidez e, por outro, pelo medo de magoar Tomé. Para ele, eu era o amigo em quem podia confiar, a quem podia confessar sem qualquer receio, sem o mínimo vislumbre de ameaça, todo o amor que sentia por Mel. Eu ouvia-o, mantendo-me impenetrável, fechando-me sobre mim próprio como um bicho de conta, a tentar conter a amargura por não haver outra Mel igualzinha àquela. O mundo faz réplicas de tanta coisa, e tinha logo que existir apenas uma, uma única e inigualável Mel. Não me passava pela cabeça, nem tão pouco pela de Tomé, que a felicidade só dura enquanto não chega a incerteza.
            Os pensamentos em que me tinha afundado, foram subitamente interrompidos pelo toque desenfreado das campainhas e pelo intermitente pisca-pisca dos sinais luminosos. A guarda da passagem de nível apressou-se a fechar as cancelas, desta vez sem a bandeirola debaixo do braço. Percebi que iria passar um comboio sem paragem. Olhei mais uma vez aquele coração gravado na pedra, abraçando o meu nome e o de Mel, e recuei mais uma vez até àquele domingo de Páscoa. Tomé já me aguardava, completamente louco de raiva e um olhar alucinado como nunca lhe tinha visto antes. "Como foste capaz? Como me pudeste fazer isto?", berrava ele. "Julgava-te o meu melhor amigo!", continuou, atirando-se a mim, esmurrando-me o peito com ambos os punhos cerrados. "Não percebo ao que te referes!", ripostei, perplexo, enquanto me tentava defender, agarrando-lhe os punhos. "Afinal, não passas de um cobarde! Se a amas porque não o dizes? Porque não o assumes tal como eu, em vez de te acobardares?", insistiu. "Porque o fizeste? Porque tinhas de gravar o teu nome por cima do meu?", concluiu, enquanto me fulminava com um olhar inquisidor. Assim que me libertei-me de Tomé, virei-me na direcção do velho abrigo de madeira, procurando uma explicação, e foi quando me lembrei do dia em que ele desenhou aquele coração nas costas do banco. Levou um dia inteiro a fazê-lo, com o entusiasmo e a ingenuidade de uma verdadeira paixão, justamente no dia do seu aniversário, recorrendo ao bico do canivete que eu lhe tinha oferecido como prenda de anos. "Deves estar a fazer confusão, Tomé. Não fui eu...", ainda disse, voltando-me novamente para ele. Só que, quando me virei, já não o vi, Tomé desaparecera inesperadamente da minha vista.
            Foi então que ouvi aquele grito carregado de agonia, enquanto o comboio sem paragem passava, fulminante, deixando atrás de si um buraco negro, como se arrastasse, com toda a sua força de sucção, a existência de tudo por quanto passava. O pressentimento de que algo terrível acontecera tolheu-me os movimentos. A angústia por já não ver Tomé, por ele poder não estar vivo, a esmurrar-me ainda o peito, preenchera, de repente, todo o vazio que a passagem do comboio provocara. O odor do creosoto tinha-se transformado em odor a sangue e vísceras. Um odor que começou a trepar pelas paredes do cais, vindo até mim, tão intenso e corrosivo que me devorava os ossos, dilacerando-me por fora e por dentro, como se tivesse sido eu a ser trucidado pelas garras metálicas da locomotiva. Fragmentos de carne humana espalhavam-se ao longo da linha férrea, ainda pulsantes, como se, agora, fossem coisas diferentes, corpos de carne viva a agonizarem antes do estertor final. Então, agachei-me à beira do cais, dobrando-me sobre mim próprio, e soltei um guincho de dor. Naquele momento era só eu e a minha dor. Eu era a própria dor. Já não ouvi os gritos de Mel que se aproximava de mim a correr. Já não ouvi os gritos que o mundo lançou sobre a terra inteira.
            "Senhor! Senhor! Tenha cuidado que o comboio rápido vai passar. Afaste-se da beira do cais", escutei, subitamente. Recuei dois passos e olhei. A guarda da passagem de nível gesticulava na minha direcção, dois braços gordos e muito curtos. Peguei na mala, que se encontrava sobre o banco corrido de pedra, e dirigi-me para a saída do apeadeiro. Junto à passagem de nível, aguardei que o comboio rápido passasse, até se tornar somente um ponto oscilante a sumir-se no infinito. Olhei ao longo da linha férrea, que não era mais do que um tapete negro e triangular, sobre o qual se afunilavam duas linhas muito rectas e luzidias. Então uma nesga de sol perfurou as nuvens, socando-me os olhos como um punho cerrado, obrigando-me a fechá-los. Foi quando os abri, logo de seguida, que me pareceu ver Tomé. Era o seu busto entre os dois carris; apenas se via o seu busto, como se o resto do seu corpo, do peito para baixo, se tivesse cravado por entre as pedras do balastro. Tomé fitava-me. O seu rosto era de pedra azulada e tinha a cor da carne morta. Os olhos, raiados de sangue, estavam tristes e esvaziados.
            Do apeadeiro para o centro da povoação subia-se por uma estrada de asfalto, estreita e ladeada, de ambos os lados, por pequenas casas caiadas, todas com uma porta a meio e uma janela de cada lado. Ao fundo, na parte mais alta da estrada, estendia-se um muro alto, também caiado, por trás do qual se viam algumas pontas de ciprestes, o que me levou a pensar que se tratava do cemitério. A casa de meu tio, segundo me explicaram no café, à saída da passagem de nível, ficava naquela direcção e era para lá que eu me dirigia. A noite aproximava-se e, embora o meu tio me tenha oferecido estadia, haveria que chegar o mais depressa possível, pois, por ali, segundo ele me dissera, era costume ir-se para a cama cedo. Tinha perdido demasiado tempo no apeadeiro e, provavelmente, o meu tio já se estaria a interrogar pelo meu atraso. Embora a minha idade já não me permitisse grandes correrias, estuguei o passo até chegar ao cimo da subida, onde terminavam as casas e se abria um pequeno largo, no qual me deparei com um cruzeiro de pedra ao meio, e de onde saíam duas outras estradas, estas calcetadas em pedra de granito irregular; numa via-se o muro e o portão do cemitério, na outra, ao fundo, via-se a torre da igreja. Como até ali não me tinha cruzado com ninguém, decidi entrar numa pequena loja, para perguntar novamente onde era a casa de meu tio, cuja porta dava para o largo e onde se viam alguns jornais e revistas, de um lado, e cestos de flores do outro. Subi os dois degraus de pedra e entrei. Uma mulher, de costas para mim, colocava maços de tabaco nas estantes, por trás do pequeno balcão. "Boa tarde", disse eu. A mulher retribuiu, mantendo-se mais alguns segundos de costas, enquanto arrumava minuciosamente o último maço, parecendo não ter pressa.       "Deseja alguma coisa?", perguntou, virando-se para mim. Durante algum tempo olhámo-nos mutuamente, sem nada dizermos. Depois, mostrando-se curiosa, talvez pelo facto de eu a fitar intensamente, continuou: "Não é daqui, pois não? Ou conhecemo-nos de algum lado?". "És tu, Mel?", balbuciei, tentando sair do pasmo onde me enfiara nos últimos momentos. "Mel? Deve estar a fazer confusão. O meu nome é Amélia", ripostou. "Mel, sou eu, o Romeu. Não me reconheces?", insisti, parecendo não a ouvir. Foi então que algo dentro dela pareceu despertar, ao ouvir o meu nome, e lançou um sorriso. As recordações nunca morrem dentro de nós, apenas entram num sono profundo, numa espécie de estado de coma que pode durar vidas inteiras, mas, muitas vezes, basta um clique, um pequeno sinal, um simples nome, para que elas acordem e se tornem vivas. Se houve algum momento em que eu tive alguma certeza na vida foi aquele. Reconhecera-a de imediato. O seu cabelo já não tinha a cor de âmbar, o tempo encarregara-se de o grisar. O seu corpo amadurecera, perdendo a candura, a graça de menina. Os seus lábios eram menos cheios, mas continuavam curvilíneos e a soprar os sorrisos para longe. O sorriso que ela acabara de lançar não me deixara qualquer dúvida. Conversámos durante algum tempo. Falámos, essencialmente, da nossa vida depois daquele dia. Daí para trás, nada existira para nós. Mel vivera a sua vida toda naquela terra, nunca casara e não tinha filhos. Tornara-se professora primária, cantava no coro da igreja e, recentemente, abrira aquela pequena loja. Por vezes fazia algumas viagens dentro do país; ia a Lisboa e ao Porto, raramente ao Algarve e, mais frequentemente, a Nossa Senhora de Fátima, ao Bom Jesus e até a Santa Maria da Adelaide. Eu contei-lhe que, depois de ter crescido em Lisboa, tinha andado largos anos por África e por outras partes do mundo, vivido na Holanda, onde casara e tivera dois filhos, tendo regressado a Lisboa há cerca de dez anos, onde vivia actualmente. Contei-lhe também sobre o motivo que me tinha feito viajar até ali e que teria de voltar para Lisboa já no dia seguinte. Por fim, disse-lhe, já em jeito de despedida, que tencionava, antes de me ir embora, fazer uma visita ao cemitério, e perguntei-lhe se ela não me venderia um ramo de flores, que eu pudesse levar. Houve um silêncio entre nós, até que ela se deslocou aos cestos de flores que estavam à entrada e compôs um pequeno ramo de rosas brancas. "Toma, são estas que eu levo sempre!" Peguei no ramo de rosas e saí. Ela seguiu-me, desceu os degraus e ficou ali, de pé a olhar-me, enquanto eu me afastava. "Sabes... Fui eu...", ainda ouvi ela dizer, com uma voz sumida e trémula. "Fui eu que gravei o teu nome!".
            Continuei em frente sem me virar, sem dizer mais nada. Há palavras que fazem mais sentido quando se perdem no silêncio. Talvez, há quarenta anos, houvesse palavras para dizer um ao outro. Teria sido nessa altura que eu deveria ter pegado nas palavras e lhas deveria ter dito, tal como se lhe oferecesse uma rosa branca; mas não, não o fiz e, agora, já nada mais restava. Agora, por mais palavras que houvesse, cairiam sempre naquela espécie de buraco negro, que um comboio rápido provoca ao passar.
            Com o ramo de rosas numa das mãos e a mala de viagem na outra, entrei dentro do cemitério, através de um sólido portão de ferro forjado, que guinchou assim que o empurrei. A sepultura de Tomé ficava logo à entrada, junto à sebe que ladeava a ala central e dum cedro que lhe faria sombra, caso estivéssemos num dia de sol. Sobre o monte de terra, praticamente raso e informe, via-se uma lamparina de azeite apagada, uma jarra de flores já murchas e a lápide de pedra, negra e velha. As inscrições da lápide eram totalmente ilegíveis e o retrato a preto e branco de Tomé, dentro de uma moldura oval, estava quase irreconhecível. Retirei as flores velhas da jarra e coloquei o ramo de rosas brancas. De pé, com as mãos cruzadas sobre o meu baixo ventre e cabeça levemente reclinada, deixei-me ficar durante algum tempo aos pés da sepultura. Tomé fitava-me, mas os seus olhos já não eram tristes e vazios. O seu rosto já não era uma pedra fria e azulada. Pelo contrário, por trás daquele retrato, desbotado e puído pelas dezenas de anos, o seu rosto sorria, parecendo-me, até, ver nele um certo vislumbre de felicidade. Pensei no meu tio, que já deveria estar preocupado por eu ainda não ter chegado, e na viagem que teria de fazer no dia seguinte. Seria, certamente, uma viagem de regresso tranquila. A inquietude, que me perseguia há algum tempo, deixara de me incomodar. Aquele prurido, que há muito sentia debaixo da pele, de repente, parecia ter aliviado.

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