sábado, 8 de setembro de 2018

A INSIGNIFICÂNCIA DE ZERO


Toc, toc, toc... Toc, toc, toc. "Mas que raio! É impressão minha ou bateram à porta?", murmurou, Um, para si mesmo, muito hirto e plantado no lado esquerdo do seu único sofá. "Será algum pássaro? Se fosse assim, ao contrário de um toc, toc, toc, ouvir-se ia um tic, tic, tic, como é bem de ver. Ou será a neve? Provavelmente soltou-se algum pedaço e deslizou desde o alto da encosta, vindo embater contra a porta. Mas, se assim fosse, ter-se-ia ouvido apenas um bum, em vez deste irritante toc, toc, toc. Não, terá de ser outra coisa qualquer. Tudo menos pessoas. Pessoas é impossível. Eu sou o Um, o único, e como eu não há mais nenhum."
            Podia considerar-se, se mais alguém houvesse neste mundo para o fazer, que Um era ímpar. Era tão alto e magro que parecia varejar, mesmo sem qualquer toque de vento. Do alto da sua altura pendia um nariz enorme e alongado que, de tão desproporcionado, só não o fazia dobrar para a frente porque Um tinha a espinha demasiado rígida. Na verdade, tudo em Um era único. Um só tinha um olho. Um só tinha um braço. Um só tinha uma perna. Um só tinha meio par de sapatos e meio par de meias. E, vá-se lá saber porquê, o seu único sapato era demasiado grande para um pé tão curto, o que lhe provocava mau andar. Bom, na verdade, Um não andava, saltaricava. Ou seja, no seu todo, Um não devia mesmo nada à perfeição. Seria, talvez, a pessoa mais feia entre todas as pessoas, mas como era também a única pessoa sobre a Terra, tal coisa perdia a sua real importância, ficando mesmo reduzida à insignificância de um zero. Um considerava-se até o ser mais belo do universo e, sempre que se olhava ao espelho, através do seu único olho, não podia deixar de exclamar: "Eu sou o Um, o único, o mais perfeito, e como eu não há mais nenhum."
            Toc, toc, toc. "Outra vez! Será que não me deixam em paz?", resmungou Um. Toc, toc,toc. "Mas está teimoso, seja lá o que for," continuou, cada vez mais irritado e iniciando um saltarico nervoso, ao lado do sofá. Um só possuía um sofá, exíguo, onde só cabia ele e mais ninguém, mas no qual nunca se sentava devido ao problema da espinha, como já foi referido antes. Preferia manter-se de pé, invariavelmente sobre o lado esquerdo, todas as infindáveis horas do dia e da noite. A casa de Um também era pequena, de um só compartimento, de uma só porta, de uma só janela, onde cada coisa tinha o seu sítio próprio, que só poderia ser aquele e mais nenhum outro. Sob o seu olhar constante e atento, tudo se mantinha devidamente arrumado, bastando um qualquer objecto, qualquer ele que fosse,  deslocar-se um único e simples infinitésimo de milímetro do seu exacto lugar para que Um ficasse completamente fora de si. O que era raro acontecer, é claro, devido à condição solitária de Um. A não ser que, por exemplo, alguma formiga, alguma barata, ou outro bicharoco mais descuidado, embatesse em qualquer coisa, toda a casa era uma total pasmaceira.
            Toc, toc, toc. "Bom, não há volta a dar-lhe! Tenho de ver o que se passa, ou não me deixam descansado," proferiu Um para ninguém, agora mais resignado e saltaricando até junto da porta. "Quem está aí?", berrou ele, num tom intimidatório, obtendo apenas silêncio como resposta. "Se está aí alguém é melhor responder," insistiu Um. "Sou eu, o Zero," ouviu-se, por fim, vinda do exterior, uma voz muito ténue e tremelicante. "Que queres tu, Zero? Se é esmola, tira daí o sentido. Nesta casa só existe uma coisa de cada coisa e tudo o que te possa dar fico eu sem ela." "Não quero nada ti," retorquiu Zero, "mas um pouco de abrigo qualquer um pode dar, não custa dinheiro. É que está um frio de rachar aqui fora. Podes abrir a porta?" Por breves segundos, Um hesitou, mas, depois, lá acedeu e deitou a única mão à maçaneta da porta, deixando-a apenas um pouco entreaberta, enquanto espreitava para o lado de fora. Do alto da sua enorme altura, olhou em frente e nada viu, a não ser um manto branco de neve a estender-se pela encosta. "Oi! Estou aqui em baixo," suspirou Zero. Como não se conseguia curvar, Um revirou o olho para baixo e lá estava aquele ser roliço, com o aspecto de um ovo, tremendo tanto que se ia enterrando cada vez mais na camada de neve. "Afinal, o que te aconteceu para apareceres aqui neste estado?", perguntou Um. "Como já te disse, chamo-me Zero e vivo na terra do nada. Acontece que sou muito distraído e acabei por me perder na floresta, até vir dar ao alto desta encosta. Foi quando, devido a esta maldita forma arredondada, rebolei encosta abaixo e vim parar aqui, mesmo em frente da tua porta," explicou Zero. "Coisas que acontecem. Mas fui muito claro, não te posso ajudar em nada", disse Um, com frieza, " e o que ganharia eu em te ajudar? És um zero, não tens qualquer valor para mim. Desaparece mas é daqui, que tenho mais que fazer." Zero olhou Um de baixo ao alto, com um ar desapontado, mas não se deu por vencido. "O meu valor depende do lado em que estiver. Se me puseres do lado esquerdo, não valho nada, realmente, mas se me puseres do lado direito, passas a valer dez e, quem sabe, um dia com mais zeros até podes valer milhões", revelou Zero, com uma certa euforia, enquanto Um erguia o seu único sobrolho, revelando-se interessado. Então, depois de alguns segundos pensativo, soltou uma gargalhada inesperada. "Deves estar louco! Dez pessoas nesta casa, onde caberiam dez pessoas nesta casa? E como ia comer e beber tanta gente? Só há uma mesa pequena, só há um prato e um talher, só há um copo e uma chávena de chá. Isto ia tornar-se uma bagunça. Não, não suportaria tamanho caos, prefiro tudo tal como está. Aqui só há lugar para um, para mim e mais nenhum." "Então, deixa-me entrar, mesmo ficando do lado esquerdo. Pelo menos, faço-te companhia, já percebi que vives sozinho", suplicou Zero, por entre o bater dos dentes. "E quem te disse que quero companhia? Não insistas nada-de-nada. Olha, estou a ficar gelado também só de te ouvir", exclamou Um, preparando-se para fechar a porta e enquanto dava um último revirar de olho para espreitar o estado de Zero, que já se encontrava quase totalmente soterrado na neve. Foi neste espaço de tempo, entre o fechar e não fechar a porta, entre o desdém e a complacência, que o único coração de Um parece ter tido um vislumbre de comiseração e o fez estancar de repente quando rodava sobre si próprio. "Bom, parece que hoje é o teu dia de sorte, não te vou deixar morrer à minha porta, enregelado. Anda daí, mas não abuses da minha boa vontade; ficas quietinho do lado direito do sofá e só fazes o que eu te mandar, pode ser que ainda me venhas a ser útil." Ao ouvir tal coisa, Zero parece ter ressuscitado, lançando-se subitamente para cima da soleira da porta, o que quase derrubou Um. "Espera, vais ter de me ajudar, não vês que não tenho braços nem pernas", revelou Zero, totalmente exposto ao pé de Um. "Olha, desenrasca-te, também só tenho um braço", proferiu Um, fechando com estrondo a sua única porta. Um saltaricou de novo para o lado esquerdo do seu único sofá, e Zero, depois de um forte safanão que serviu de balanço, rebolou todo entusiasmado para o lado direito, ou seja para o lado esquerdo de quem olhasse a cena por fora. "Posso ficar no teu sofá?", ainda tentou Zero, "parece que não o usas..." "Não. Não te armes em esperto, fica onde estás e reduz-te à tua insignificância." Zero não teve outro remédio senão manter-se um zero à esquerda, alimentando a remota esperança de um dia passar para o lado direito do Um, e Um continuou em pé, embevecido consigo próprio, mas agora de olho muito mais atento, pois já não estava sozinho e, mais do que nunca, haveria que manter tudo no seu devido lugar.
            Toc, toc, toc. "Mas que raio, isto agora tornou-se um hábito. Espero que não seja outro zero, já me basta um," vociferou Um, furibundo. Toc, toc, toc. "O que será desta vez, uma pessoa já não consegue ser única neste mundo? Tem de vir sempre alguém infernizar-nos a vida! De que estás à espera, Zero, vai lá abrir, se estás aqui tens de servir para alguma coisa." "Mas eu não tenho braços nem pernas, como vou abrir a porta?", retorquiu Zero. "Desenrasca-te, também só tenho uma perna." Por artes que são difíceis de adivinhar e ainda mais difíceis de descrever, Zero rebolou até junto da porta e lá a conseguiu abrir, levando de chofre com um sopro de ar gelado, que quase o fez retroceder. "Quem é, Zero?", perguntou Um. "Não sei, não vejo ninguém", respondeu Zero. "Não brinques comigo, tem de ser alguém, ouvi bem o toc, toc, toc. Enxerga melhor à tua volta, seu cegueta", insistiu Um. "Já enxerguei e continuo sem ver ninguém. Deve ser alguém invisível." "Invisível? Isso é impossível. Pergunta quem está aí e como se chama." "Já perguntei, mas só pode ser mesmo invisível, estou com a sensação de que alguém entrou, só que não vi nada." "Alguém entrou?..." "Sim, e diz que se chama Menosum", concluiu Zero, lançando um largo sorriso com a boca que não tinha.
            Quando Zero voltou a entrar, já não viu Um, nem no lado esquerdo do sofá nem em lado algum. Desapareceu sem deixar rasto e nunca mais se soube dele. A partir de agora, seriam dois zeros a habitar aquela pequena casa, um do lado esquerdo e outro do lado direito, ou vice-versa. Não se sabe, também, como é que os dois zeros, roliços, sem braços e sem pernas, conseguiram trepar e aconchegar-se naquele sofá exíguo. E também não se sabe, porque não havia mais ninguém no mundo para o contar, quanto tempo ficaram ali, ambos fazendo companhia um ao outro. Sabe-se apenas que eram dois zeros, como poderiam ser muitos mais, mas que valiam o tudo e o nada ao mesmo tempo.

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