Trago este ruído
há tanto tempo entranhado que já faz parte de mim. Provavelmente, nasceu
comigo, ou talvez seja gerado pelo funcionamento do meu corpo, ou, quem sabe,
seja a voz do meu próprio destino. Ou, então, nem é um ruído, mas sim um silêncio
inquieto, próprio dos seres amargurados, daqueles que não têm parança, que
foram privados de uma vida de sossego. Há cerca de duas semanas que anunciei ao
meu marido que me quero separar dele. Resolvi pôr termo a trinta anos de
amargura, acabar com uma vida de submissão a um homem que nunca me soube amar. O
nosso filho cresceu, tem a sua vida e já nada me pode impedir de seguir o meu próprio
caminho. Amo-o com todas as forças com que uma mãe pode amar, mas não gostaria
de falar muito dele. Foi a única coisa boa que Mário me deu e, falar dele,
poderia fazer com que me arrependesse. Se aguentei quase três décadas de martírio
foi pelo meu filho, foi para que ele sofresse o menos possível. Reservei o
sofrimento só para mim, fiz do meu corpo um objecto de fúria, amparei com a
minha própria carne os golpes que muitas vezes se dirigiam a ele, mas julgo que
nada foi em vão, que tudo tem um propósito. O medo que me tolheu uma vida
inteira é o tónico que me faz prosseguir. Porém, para lá desta vontade de
querer finalmente ser feliz, ainda resta este ruído, ou zuído, não sei bem
distinguir. Ultimamente, tenho-o sentido mais intenso, mais vivo, qualquer
coisa como um "tchuimmm, tchuimmm, tchuimmm", um brunir de aço contra
aço, um frenesim agourento.
Mário encontra-se
nas cortes do gado. Desde que soube da minha intenção que, todos os dias, assim
que chega do trabalho, se fecha junto com as galinhas, os coelhos, os porcos,
que dorme com as ratazanas. Anda a magicar uma forma de me fazer recuar, como
muitas vezes aconteceu. Quantas vezes voltou, feito cordeirinho, pedindo-me
desculpa por tudo aquilo que era, fingindo-se arrependido, e que nada seria
como dantes, que era um novo homem, pronto a fazer de mim a mulher mais feliz
deste mundo. Mas se tão depressa despia a pele de lobo mais depressa a tornava
a vestir, obrigando-me a viver numa constante incerteza, a não acreditar nele,
a não acreditar sequer em mim mesma. Foram demasiadas as vezes que desejei a
morte, que a tentei através das lâminas que me lancetaram a carne, que a
desafiei com os venenos que me causticaram as entranhas. Tantos foram os momentos
de suplício, tantas foram as horas de agonia, tal foi o inferno em que vivi,
que tudo se tornou indiferente, até o medo. A partir de agora, acabaram as
palavras como "sua puta" ou
"sua cabra", terminaram as
ofensas e a humilhação, já não há punho fechado nem gume de faca que me possa
fazer mal. Ele está ali fechado, qual animal ferido, a ruminar nas suas
incertezas, a alimentar a sua ira para comigo e para com o resto do mundo. Sei
que está a afiar as duas facas que usa para matar os porcos, que talvez seja
esse o ruído que há tanto tempo se entranhou em mim. Mas agora tudo isso deixou
de importar. A minha vida seguirá em frente, a caminho da felicidade, mesmo que
esta não exista, mesmo que, na ânsia de a atingir, eu tenha de ir além da minha
própria morte.
Estamos em finais
de Junho. Os dias, ultimamente, parecem andar mais felizes. Lá fora, ouve-se o
chilrear dos pardais da rua, enquanto saltitam nervosos entre os beirais e a
pérgula dos maracujás. Apanhar os maracujás, cortá-los a meio e sorver aquele
suco ácido e delicioso, logo pela manhã, faz-me o resto do dia mais alegre; é a
única coisa que me deixará boas recordações desta casa, onde passei mais de
vinte anos da minha vida. Tenho de embalar as minhas coisas, as poucas coisas
que vou levar para a minha nova casa; são roupas e alguns objectos pessoais.
Levo poucas roupas, apenas aquelas que mais gosto, a maioria delas foram
compradas ao gosto de Mário e não me deixam saudades. A partir de agora quero
ser eu própria, sentindo-me bem no meu corpo, vestindo apenas aquilo que eu
gosto.
A minha nova casa
é pequena; um segundo andar independente, com um quarto, sala e kitchenette, o suficiente para mim e
para receber o meu filho e a minha família. Tem alguma mobília e, amanhã, já
estarei instalada. O meu irmão, Francisco, chegou de África e vai visitar-me em
breve, como faz todas as vezes que volta. Desta vez vou recebê-lo na minha
própria casinha, sem os olhares perniciosos do meu marido. Os seus sentimentos
de posse levam-no a ter ciúmes até do próprio cunhado. Das últimas vezes que Francisco
esteve cá mal nos vimos, mas agora tudo vai ser diferente. Haverá tempo para
conversar, recordarmos momentos da nossa infância, ele poderá contar novidades
da sua vida, contar as suas aventuras por África, poderemos rir e chorar juntos
como os irmãos devem fazer. Eu não lhe contarei grande coisa da minha vida, é
demasiado triste para ser contada; dir-lhe-ei apenas que tudo está bem e ele
compreenderá. Depois, lançará aquele seu sorriso terno e apaziguador, antes de
partir novamente.
Os raios de sol entram
pela janela, radiosos. Fazem-me meiguices no cocuruto da cabeça, como se, até
eles, estivessem felizes por este meu reinicio de vida. Hoje, é o primeiro dia
na minha nova casa. As paredes foram pintadas de fresco, são brancas e brilham
tanto como os raios de sol. Sinto o cheiro a tinta, sinto todos os cheiros,
mesmo os mais antigos, como se todos fossem novos para mim. Já arrumei tudo no
seu devido lugar. A caixinha de madeira, que Francisco me ofereceu quando fiz
trinta e dois anos, está em cima da mesinha de cabeceira. Lembro-me tão bem
desse dia:
"Toma!",
disse, ele, enquanto me repenicava dois beijos em cada face. "É pequenina,
mas leva tudo o que tu quiseres pôr dentro dela, até essa enorme tristeza que
tentas esconder de toda a gente."
"Tristeza!
Qual tristeza? Estou tão feliz por estares cá. Ainda mais se viesses de
vez."
Ele calou-se,
apenas porque não tinha resposta, como não teve durante os largos anos que se
seguiram. Olho novamente a caixinha. Dentro dela, guardei apenas as boas
recordações. Na tampa vêem-se pequenas gravuras de mulheres africanas, lado a
lado. São as mulheres de Francisco, como eu costumo dizer. Esta parte das
mulheres, ele nunca me contou, mas sei que teve muitas e imagino que as tenha
feito felizes. Tenho inveja das mulheres de Francisco, sei que as amou e foi
amado, porque, ao contrário de Mário, tem muito amor dentro dele. Mário só
carrega ódio e ressentimento. Mesmo as galinhas, os coelhos, os porcos, as
ratazanas, não são tão bichos como ele, não descem à sua irracionalidade. Mário
continua na corte do gado, mas nem os bichos lhe querem fazer companhia.
Resta-lhe a sua própria solidão, e as duas facas com que julga aniquilar a sua condição
de homem rejeitado. Imagino-o, agora, a passar os dedos pelos gumes das facas,
a embrulhá-las num pano branco, como faz antes de matar os porcos, e a
colocá-las entre o cinto das calças. Sei que me quer matar, que provavelmente o
fará, mas não quero pensar nisso. Prefiro pensar que tudo aquilo que me espera
nunca será pior do que tudo aquilo que me deixou.
É o primeiro dia
em que, ao fim de tantos anos, me sinto finalmente mulher. O ruído começa agora
a ficar cada vez mais acutilante, mais ardente. Desliza pelas veias e pelas
artérias, pela medula dos ossos, como minúsculas serpentes venenosas, até se
alojar em todos os recantos do meu ser. Ouço passos a subirem pelas escadas.
Uma escada de um só lanço, estreita e íngreme, que fica na fachada lateral da
casa. Alguém bate à porta, sem nada dizer. Sei que é Mário, sinto-lhe o cheiro,
ouço o seu respirar. Abro a porta e ele entra. O seu olhar é baço, estático,
sem vida; são olhos de um cego que não quer ver. Mário não me vê, não vê a sua
mulher, não vê uma mulher, vê um ponto branco no meio da sua escuridão, é o
cimo do poço que jamais conseguirá alcançar. Mário tira as facas da cintura e
cruza as lâminas uma na outra. "Tchuimmm, tchuimmm, tchuimmm." Percebo,
agora, a razão deste ruído, que há muito tempo não me larga. Subitamente, algo explode
dentro de mim; um ardor intenso na barriga, no peito, no pescoço. O chão
escapa-me dos pés, a casa roda sobre mim. Do fundo da garganta, vem um líquido
viscoso, desliza pela língua, escorrega pelos cantos dos lábios; é ácido e doce
ao mesmo tempo, como o suco dos maracujás. Deito os olhos ao céu, os raios de
sol continuam radiosos, uma luz branca turva-me o olhar, reflectida por todas
as paredes brancas da casa.
Gosto dos dias
alegres e claros, mas quando eu morrer não quero sol. Para onde vou não preciso
do sol, nem da luz. No dia do meu funeral prefiro que chova, que chova muito. A
água alimenta a terra que me dará abrigo. Também gosto da chuva. Gosto dela
porque, assim que se cansa da negridão das nuvens, decide cair, e nada nem
ninguém neste mundo, alguma vez o poderá evitar.
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