domingo, 17 de abril de 2016

OS QUATRO CHIFRES DO DEMÓNIO

Cap. IV

Quando transpus a porta para o outro lado, constatei que tinha acabado de entrar na biblioteca. As estantes de madeira, pintadas em cores claras, confundiam-se com as paredes, que pareciam forradas num papel de padrões coloridos e geométricos, devido às cores diversas das lombadas dos livros, dispostos de uma forma arrumada e limpa, ao correr das prateleiras. Suspenso, sobre a minha cabeça, como uma aranha transparente, um lustre de cristal sustentava um anel de pequenos sois cintilantes. Mais ao fundo, sobre uma robusta mesa de leitura, com um tampo polido em tons de ébano e pernas arqueadas como as de um fauno, repousavam meia dúzia de livros, alguns papeis dispersos, um telefone e um cinzeiro em vidro, vazio e limpo. Ao contrário do salão nobre, ali sentia-se que o mundo preferia manter o enigma das coisas vivas. Lembrei-me que tinha lido algures, que os livros eternizam a vida dentro deles, porque conservam um bocadinho de cada uma das almas que os lê. Não sei se seria assim, mas a verdade é que, naquela sala, havia algo de muito forte a impor a sua presença. Também não sei se essa presença vinha dos livros, ou dos objetos, ou da própria casa e da história que ela contava, ou, até, se eu me estava a deixar levar por alguma fantasia momentânea, própria dos desatinos criadores. O que sei é que, aquele espaço, com ar arrumado e luminoso, se teria de ser dominado por alguma alma, não o seria com certeza pela sinistra viúva. E foi quando, subitamente, senti um leve suspirar nas minhas costas, o que me provocou um calafrio, mais pelo efeito de surpresa do que pelo susto. Depois, a minha racionalidade voltou à tona e levou-me a pensar que se tratava de minha mãe.

“Então? Já acordaste?” Reagi.”

“Se já acordei? Estou acordada desde há tanto tempo que nem o dia se lembrava ainda de nascer.”

Reconheci, de imediato, que não era quem eu pensava. A voz era feminina, doce como a de minha mãe, mas mais timbrada e resoluta. E quando me virei, lá estava aquela figura, esguia e sensual, com a perna esquerda a cruzar sobre a direita, o corpo ligeiramente reclinado, e com ambas as mãos apoiadas na ombreira da porta, onde pousava o rosto e escondia o olhar, por baixo de uns cabelos longos e ondulados. Durante alguns momentos, aquelas duas órbitras de sombra fulminaram-me, emanando um enigmático encantamento, o que me roubou as palavras e me fez paralisar. Então, após desfazer a posse, dirigiu-se a mim com dois passos largos, e a mão direita em riste para me cumprimentar.

“Olá. Sou a Joana. Joana Aragão, a neta...”

“…E tu? Deves ser o Africano. Ou o menino da mamã, pelo que me consta.” Arriscou, com um esgar sorridente, enquanto apertávamos as mãos. Senti-lhe a pele tépida e suave, e apeteceu-me prolongar o cumprimento, mantendo-lhe a mão apertada durante algum tempo, o que ela não recusou.

“Francisco Boaventura, o Africano, tal como dizes.” Assenti. “E a ti, como te posso chamar? Joana? Ou Joaninha, a menina da vovó?”

“Podes-me tratar por Janis, como todos os meus amigos. E estou muito longe de ser a menina da avó, essa beata velha, posso garantir.” Respondeu com um semblante mais sério, retirando a mão de dentro da minha.

“Não duvido.” Assegurei. “E será que ouvi bem? Janis?..de Janis Joplin?”

“Em cheio, Africano espertinho. Parece que afinal sempre conheces o mundo, para além da selva.” Respondeu, irónica.

Foi então que deu meia volta e me virou as costas, para se afastar num andar ostensivo e provocador. Por baixo de uns jeans boca-de-sino, muito justos nas ancas, e de uma blusa larga, em tons de marrom, meio transparente, toda a voluptuosidade daquele corpo de mulher, lânguido e esguio, se insinuou perante o meu estupidificado olhar de macho, sujeito à tentação. Enquanto caminhava até á mesa de leitura, cada passo que dava realçava-lhe os contornos femininos, como se fosse um bailado de formas, a desenvolver-se desde a linha interior das coxas, cruzando-se com a curva das nádegas, até explodir nos confins do meu cérebro. Assim que se sentou, naquela poltrona de couro pardacento, lançou-me novamente o seu olhar, intenso e penetrante, como se me estivesse a ver por dentro, como se aquele olhar fosse um bando de pássaros negros a pousar sobre uma árvore nua, exposta a uma tempestade.

Então, puxou uma das gavetas, pegou num maço Negritas, já aberto, de onde fez deslizar um cigarro, que lançou nos lábios com um gesto rápido e preciso. Fez todos estes gestos sem descolar os seus olhos dos meus, sempre com um sorriso malicioso, tendo a noção exacta dos efeitos que a sua atitude provocatória me estava a causar. Eu sabia perfeitamente que ela me estava a testar, como só as mulheres sabem fazer, e mantinha-me imperturbável, a tentar demonstrar uma certa indiferença. Mas a indiferença é sempre uma estratégia de risco, que pode passar de mel a fel e vice-versa, e que se deve abandonar na altura certa. Foi quando meti a mão ao bolso, para pegar no isqueiro e lhe oferecer lume. Só que, quando ela se debruçou para se aproximar do isqueiro, e levantou a mão esquerda para puxar a farta e escura cabeleira para trás da nuca, o movimento do braço fez com que o largo decote da blusa se abrisse um pouco mais, o suficiente para lhe revelar o contorno dos seios, cândidos e roliços, como dois montículos de neve, coroados com uma auréola de bronze. Se até ali tinha sido um tormento manter o decoro, agora passava a ser uma tortura. Por momentos, apeteceu-me enlouquecer, meter a mão pelo decote e acariciar, com a ponta dos dedos, aqueles dois carocinhos de carne, mordiscá-los até que eles se retesassem de prazer e me suplicassem por mais. Ocorreu-me que a loucura é como a corda de um alpinista; se a usarmos corremos o risco cair, e se não tivermos a audácia de a usar, também nunca chegaremos ao cimo da montanha. E a verdade é que não tive essa audácia, e fiquei-me nas cordas. Para disfarçar o embaraço, desviei o olhar para a parede, por detrás da poltrona, onde estava pendurado um quadro da já referida Janis Joplin. Joana, ou melhor Janis, sem largar o seu sorriso malandro, chegou a ponta do cigarro ao lume do isqueiro, recostou-se para trás, traçou as longas pernas, firmes e torneadas, e lançou duas baforadas na minha direcção.

“Fumas?”

Ainda debaixo da excitação que aqueles últimos minutos me provocaram, retomei atrapalhadamente a compostura, como se nada se tivesse passado, e respondi:

“Depende. Não em recintos fechados.”  

“Mas que menino atinado me saíste!” Ironizou.

“Sabes, desde muito pequena que adoro Janis Joplin. É o meu ídolo. Uma deusa, que me acompanha e acompanhará enquanto eu pertencer a este malvado mundo dos vivos.”

 “Ter ídolos, vivos ou mortos, pode não ser mau de todo, desde que eles se mantenham no céu e nós na terra.” Argumentei. “Mas, mesmo vindo da selva, consigo ver que não és do género de resignar, tal como fez o teu ídolo. É que de resignações está o inferno cheio, e pelo que pude constatar, durante o dia de hoje, desse mal nem esta miserável terra se livra.”

“Obrigado pelo elogio. No que me diz respeito, podes ficar tranquilo, gosto demasiado da vida para a deitar cano abaixo. No entanto, reconheço que tens alguma razão, em relação à Janis. Julgo que nunca se saberá se o fez por excesso de lucidez ou de loucura, e a loucura leva sempre á resignação. Para se ser idolatrado é preciso ser louco, e isso tem os seus custos.”

“Provavelmente.” Admiti.

“Relativamente ao Tozé, tenho as minhas sérias dúvidas, porque o conhecia demasiado bem”

Percebi que se estava a referir ao António José, o jovem enforcado, daquele dia.

“Não era tolo nem sábio, nem louco nem esclarecido, era o mais comum dos mortais, como todos nós somos. Eu nunca compreendi essa ideia repentina dele de querer ser acólito, e de casar pela igreja, mas penso que viu nisso a única forma de se aproximar da filha do sacristão; a Ana Maria, a noiva, ou a Mata Noivos, como eu lhe costumo chamar, e por quem ele se apaixonou. Enfim, tinha os seus sonhos, os seus anseios e angústias também, mas era isso que o fazia andar. Duvido muito…ou por outra, não duvido, tenho a certeza que nada o levaria a cometer tamanha loucura.”

“Então, achas que ele não se suicidou?” Indaguei.

“Não sei…não sei mas vou descobrir. Ninguém me tira da cabeça que essa falsa santinha, que essa fingida da noiva, não tenha nada a ver com isto.”

Entretanto, após uma curta pausa, Janis descruzou as pernas de cima da mesa e torceu o tronco, o suficiente para lançar o olhar na direcção da janela.

“ Estás a ver aquele cruzeiro lá fora?”

“Sim, estou. Passei por lá há pouco, antes de entrar nesta casa.”

“E viste a coroa de flores?”

“Claro que vi. Para além de uma lamparina e de umas marcas com algarismos, o que achei estranho e algo sinistro.”

“Pois põe sinistro nisso. Foi ali que o primeiro morreu.”

“O primeiro?” Suspirei, incrédulo.

“Sim, o primeiro namorado da Ana Maria. Nas últimas grandes cheias, apareceu ali com um pé preso na argola de ferro onde estão penduradas as flores. Foi encontrado mais podre que uma abóbora, depois do nível das águas ter baixado e de toda a vila o ter procurado, durante dias a fio. Na altura, toda a gente afirmou que se tinha matado e foi assim que o caso foi encerrado. Nem a uma única badalada de sino, aquela alma teve direito.”

“De facto, não deixa de ser intrigante!” Observei.

“Como vês, já existem antecedentes e tenho todas as razões e mais algumas para suspeitar dessa nossa queridinha Mata Noivos. Há muita coisa ainda por explicar.”  

 Declarou, com um ar circunspecto, expelindo uma baforada de raiva, enquanto esmagava a beata do cigarro no fundo do cinzeiro.

“E tu, meu menino da mamã, tem cuidado com estas beatas cá da terra, sejam velhas ou novas. São piores que o mosquito, mordem pela surra e quando dás por ela já estás contaminado e sem salvação. Principalmente, não vás na cantiga da velha beata aqui da casa, nem tu nem a tua mãe. Ou então, daqui a pouco não fazem outra coisa senão andar a lavar o rabinho do padre Clementino com água-de-colónia.”

“Não! Claro que não.” Balbuciei, demasiado crédulo, só porque não me ocorreu mais nada para dizer.

“Mas já vi que não morres de amores pela tua avó.”

“Quem vai morrer de amores por uma víbora dessas? Ela no seu cantinho e eu no meu, e é assim que deve ser.”

Reparei que não pretendia falar sobre o assunto. Mesmo assim, ainda acrescentou:

“Mas não te preocupes, são assuntos nossos. Apesar de tudo, para além de falar pelo cotovelos, não deixa de ter algumas coisas boas. Se tens intenções de continuar por aqui, e levares uma vida tranquila, só tens de cumprir estes três mandamentos: Não seres comunista, ires á missa todos os Domingos e cortares esse cabelo.” Rematou, lançando uma gargalhada.

Então, levantou-se de repente e chegou-se a mim, colocando os seus olhos de âmbar à altura dos meus. A sua respiração entrou por mim como se fosse a minha, senti o ardume do seu corpo a queimar-me por dentro e todo eu estremeci, não conseguindo disfarçar a excitação, novamente.

“Que achas do amor livre?” Sussurrou, apanhando-me desprevenido, fazendo-me recuar até assentar as nádegas no bordo da mesa, quase ao ponto de me desequilibrar.

“Todo o amor é livre. Que eu saiba ninguém pode proibir ninguém de amar.” Consegui retorquir, mesmo assim.

“Não estou a falar desse amor. Não falo de romance. Refiro-me ao amor carnal, ao sexo. Imagino que saibas o que isso é.”

Insistiu, enquanto me empurrava para trás com os dedos da mão direita enfiados entre os botões da minha camisa, arrepanhando-me os cabelos do peito e encaixando-se em mim. Os jeans, demasiado justos, realçavam-lhe a fenda do sexo, fazendo-me sentir como se estivesse a sobrevoar um vale entre duas montanhas. Ao aperceber-se do chumaço entre as minhas pernas, aquele animal bravio, fez questão de me enlouquecer ainda mais, pressionando a zona da púbis contra o volume do meu pénis entesoado. Eu termia, não de frio mas de raiva e desespero. Raiva por saber que ela se estava a divertir á minha custa, sem sequer me ter convidado, e que tudo não passava de um engodo, de um ardil feminino, com o único propósito de me levar ao limite. Desespero, por não poder entrar naquele jogo; porque não me saía da cabeça que a minha mãe e a velha estavam ali ao lado, e porque tinha a noção de que, assim que tivesse o primeiro gesto de audácia, assim que tivesse a coragem de fraquejar, tudo se esfumaria. Porque as mulheres são mesmo assim; picam o boi, e quando o boi se vira para lhes fazer frente, em vez de o pegar fogem com o rabinho entre pernas. Fazendo força com as mãos atrás das costas, arrastei o rabo pela mesa e afastei-me ligeiramente.

“Acho que… cada coisa no seu lugar…tudo no seu devido tempo.” Gaguejei.

“És mesmo atinadinho. Mas gostei de ti. Um dia destes vou descobrir esse teu lado selvagem.” Segredou-me, com os seus lábios, húmidos e redondos, quase a roçarem os meus.

De seguida, sem que eu tivesse tempo de reagir, recuou e saiu porta fora, deixando-me estatelado em cima da mesa, de costas que nem uma barata tonta.

Ainda consegui pigarrear uma resposta, mas já nem as paredes me ouviram.

“Não duvido, menina Janis...”

Quando me recompus, depois de me ter tentado levantar sem deitar nada ao chão, já a luz do crepúsculo deslizava, silenciosa, pela abóboda negra da noite. Durante largos momentos, não consegui raciocinar devidamente sobre o que tinha acontecido naquela sala. Aliás, nem sobre o que tinha acontecido ali, nem naquele casarão, nem desde que chegáramos aquela povoação. A verdade é que, para uma terra pequena e pacata, como minha mãe tanto gostava de apregoar, já me parecia haver demasiada emoção. Não tanto por causa daquela cena teatral de Janis, e pela sua atitude de gata assanhada, mas mais por tudo aquilo que ela disse. Se, por um lado, Janis se revelou um ser destravado, muito para além do seu tempo, por outro, pareceu-me alguém com uma grande maturidade e muito firme nas suas ideias, e foi isso o que mais me fascinou. Não porque a imagem daquele corpo, quente e libidinoso, não deixasse de me espicaçar o cérebro, ou porque eu menosprezasse os assuntos da carne, relativamente aos do espírito. Tal como meu pai, também eu começava a apreciar, com todo o entusiasmo, os atributos femininos, e a aprender que, muitas vezes, não se pode ir ao pote com demasiada sofreguidão. Por isso sentia-me bem comigo mesmo, por saber que, se eu a Janis tivéssemos ido mais além, seria com certeza o fim sem sequer ter havido princípio. E como as ânsias do corpo são sempre mais fáceis de solucionar do que todas as outras, haveria que dar tempo ao tempo, porque novas oportunidades surgiriam.

A chuva tinha parado, deixando apenas umas finas agulhas de água a escorrer pelas vidraças. Espreitei por entre os pesados cortinados de veludo, em tons de pérola. Lá fora, no lado oposto da praça, vislumbrava-se a sombra de um candeeiro de parede, a despejar um pálido e tímido cone de luz. O cruzeiro de pedra dissimulava-se na penumbra da noite, com as suas negras marcas dos anos. A lamparina tinha soçobrado perante a chuva, tal como a coroa de flores perante a mágoa. Agora, depois do que Janis me contara, podia compreender melhor o significado daqueles sinais. O cruzeiro era a memória viva das trágicas inundações com que o tempo se habituara a brindar aquela terra, e nada melhor do que uma cruz para simbolizar a fatalidade. A última grande cheia tinha sido em 1975, tinham-se passado dois anos. O nível das águas quase que submergira a totalidade do cruzeiro, conforme indicava aquela linha preta, gravada na pedra. Calculei, pela sua altura, que toda a zona baixa de Valdágua teria ficado inundada, que todas as casas periféricas da praça teriam ficado submersas e que só o primeiro andar do casarão, deveria ter escapado á devastação das águas. De facto, não deve ter sido por acaso que o criador deste mundo escolheu, como sítio para viver, o céu e não a terra. É que o mal quando chega vem sempre por baixo, como um bicho rastejante.

Olhei mais uma vez para o cruzeiro e pensei que não deixava de ser irónico alguém morrer amarrado a uma cruz, tal como morreu Cristo, para, de seguida, ser renegado. Lembrei-me, também, daquele corpo acabado de descer á terra fria, mas que não era mais fria do que as terras abençoadas. Duas almas párias, ambas unidas pelo amor que tiveram á mesma mulher, um amor que, provavelmente, lhes traçou o destino.

Naquele dia em que, eu e minha mãe chegámos, os sinos não tocaram. Deus refugiara-se num profundo silêncio. Pensei que o silêncio é um recurso inesgotável, que nunca deixa de marcar comparência perante os mais necessitados e que poderia muito bem ser a última bênção das almas resignadas.