Chegámos à vila precisamente na hora
do enterro. A tarde, naqueles primeiros dias de Março, deixava-se humedecer
numa morrinha soturna e fria, quase gelada. O comboio foi refreando a marcha
num guinchar de aço contra aço, até que, após um frémito brusco, estancou; como
um cavalo exausto a aguardar o apear do cavaleiro. Enquanto retirava as malas
da bagageira, olhei através dos vidros sujos das janelas e vi a guarita do
velho apeadeiro, mostrando a sua decadência. O salitre trepava pelas paredes,
comendo-lhes a cal e o barro, desenhando mapas de um mundo desconhecido. Sobre
a parede lateral, um painel de azulejos amarelecidos, ostentava o nome da povoação,
escrito em letras azuis, já num tom desmaiado: “Vale de Água”. Ao longo da
gare, um muro de alvenaria alvacenta exibia os sinais da revolução, onde se
destacava uma anafada figura, a fumar um charuto, de cartola na cabeça, e a ser
decapitado por uma enorme foice (cruzada com um martelo), desenhados num
vermelho sanguíneo. Por baixo da funesta figura consegui ler: “Fora com os
capitalistas” e “Morte ao fascismo”.
Eramos os únicos passageiros a
desembarcar. A guarda da passagem de nível mantinha-se de bandeirola vermelha
no ar. Era uma silhueta estranha, com a forma de um pino de bowling, parecendo envolvida num
invólucro transparente que a confundia com o ar pesado da tarde, e a tornava
quase invisível. Atabalhoadamente, eu e minha mãe, descarregámos a bagagem sobre
as lajetas do cais, dilaceradas pelo alastrar das ervas daninhas. A guarda
baixou a bandeirola e o comboio deslizou sobre os carris, franqueando-nos a
vista. Foi então que deparámos com aquele manto escuro de gente, barrado pela
cancela de cantoneiras metálicas, pintadas a vermelho e branco. Uma urna
parecia boiar sobre os olhares tristes, como se ninguém lhe pegasse, como se
uma força estranha lhe não permitisse já algum contato com qualquer sinal de
vida. A tenebrosa caixa negra, banhada num lustre preto e dourado, lançava
lampejos púrpuros, num ritmo intercalado, acompanhando o piscar luminoso dos
semáforos e o retinir das campainhas. Quando aquele monstro de ferro se sumiu
na primeira curva da via-férrea, o pisca-pisca apagou-se e o tlim-tlim-tlim
deixou de se ouvir. A cancela desimpediu a passagem e o funeral retomou a
marcha, deslizando como uma sombra silenciosa, rente ao chão de asfalto húmido.
“Que estranho! Um funeral sem padre.
Não reparaste?” Disse minha mãe, subitamente, apanhando-me desprevenido, ainda
a olhar ao longe o gingar da última carruagem sobre o polido luzidio dos carris.
“Eu, não! Reparaste tu, porque estás
viva. De certeza que o morto não se vai preocupar com tal pormenor.” Respondi.
“Querido, só não fico chocada porque
sou tua mãe e conheço-te muito bem.”
Continuou ela, não digo indignada mas
talvez algo inquisidora, dando-me a sensação de que se calou a matutar no
assunto. De seguida, pegou nas malas e virou-me as costas, pondo-se ao caminho.
“Vamos, estou sem pachorra para o teu
humor negro.”
Mais adiante parou, junto ao pino de bowling.
“Boa tarde. Por favor, sabe-me dizer
onde fica a praça do Cruzeiro? Perguntou, afavelmente, parecendo-me que só lhe
fez a pergunta para não parecer antipática.
Peguei também nas minhas coisas e
segui-a. Em silêncio, a mulher apontou a bandeirola para o outro lado da linha,
no sentido oposto ao que seguiu o funeral. A minha mãe (a partir de agora
chamar-lhe-ei apenas mãe por achar desnecessário estar sempre a repetir que é
minha) retomou o passo decidida. Partiu daquela terra, há muitos anos atrás,
quando era criança, e ainda tinha uma vaga ideia do trajeto a seguir até à casa
da viúva Matilde, onde iriamos ficar. Seguimos os dois por um caminho de pedra
rolada, tornando-se penosa a caminhada, devido ao piso irregular e à imensa
bagagem. Duas centenas de metros à frente parámos e a mãe voltou à carga:
“Sabes, meu querido, a partir de
agora tens de ter alguma ponderação com certas coisas que dizes. Não é por mim,
que te tolero tudo, mas estamos numa terra pequena, de gente católica, e, por vezes,
podes ferir algumas suscetibilidades.”
“Deves estar a brincar comigo! Nem tu
nem ninguém me irá impedir de dizer o que penso. E pelo que ouvi contar a
censura já acabou há alguns anos atrás…”
Retorqui, levantando-me de cima da
mala onde estava sentado e olhando á minha volta para disfarçar a irritação. As
casas que ladeavam o caminho expunham-se na solidão amarga da tarde. Eram casas
baixas e contíguas, com telhados cerâmicos enegrecidos pela invasão predadora
dos fungos e líquenes; todas com fachadas caiadas num branco mortiço e com
socos em tons de anil, carmim, por vezes ocre. Vi portas e janelas fechadas, e
não senti vivalma. Pensei que, provavelmente, todos aqueles seres que as
habitavam estariam no funeral, deixando nelas o mesmo pesar que carregaram
consigo próprias. A morrinha tinha dado lugar a um chuvisco mais intenso e a
humidade começava a moer a pele. Prosseguimos e retomei a conversa:
“…E também não fui eu que pedi para
vir para este beco do mundo, medonho e triste! Já me sinto a definhar e ainda
mal cheguei.”
“Até posso aceitar que reajas assim,
mas sabes que não temos alternativa. És um jovem, a revolta e a irreverência
ficam-te bem, mas, por agora, temos de aceitar esta oportunidade que nos dão.”
Continuou a mãe, já arquejada pelo
peso das malas e pelas nossas conversas de sempre. Eu, sentindo-lhe o desânimo,
tirei-lhe duas das malas, para a aliviar um pouco do esforço, e concluí:
“Vamos. Depois se vê. Sabes bem que
só estou aqui por causa de ti!”
Finalmente chegámos à praça do
Cruzeiro, que de praça só tinha o nome, pois não passava de um pequeno largo,
onde, em pleno centro, se via uma tosca e retangular cruz de pedra. Sem grandes
primores artísticos, erguia-se sobre um sopé quadrado, a formar três degraus;
para onde atirei a carga que já me afadigava as costas, e onde me sentei
enquanto esperava pela mãe, que se deixou atrasar. O antigo cruzeiro, pela sua
simplicidade, nunca despertaria a atenção do turista mais curioso. No entanto
algo incomum me fez reparar nele; sobre a superfície de pedra, já carcomida
pelo tempo, a subir ao longo da sua coluna vertical, viam-se pequenas linhas pretas
horizontais, que mais parecia estarmos perante uma régua graduada, mas com
espaços irregulares. Levantei-me para ver com mais atenção. A seguir a cada uma
das linhas havia a inscrição de quatro algarismos, correspondentes a anos
diferentes. Reparei nos mais visíveis, que também eram os mais recentes; 1962,
1969, 1973, etc.; mas sem qualquer sequência ou correspondência entre eles.
Mesmo no alto do cruzeiro (e convém dizer que este tinha, bem à vontade, cerca
de quatro metros), ainda consegui ver o último traço, correspondente ao ano de
1979. Mas o mais curioso disto tudo foi quando contornei o cruzeiro; pendurado
numa argola metálica, no lado oposto da coluna, havia uma coroa de flores já secas
e esmorecidas. Mais abaixo, no sopé de pedra, uma lamparina de azeite irradiava
uma luz trémula, resistindo ao fulgor da chuva.
Senti-me intrigado. Desde que chegara
que só via sinais sinistros á minha volta e interroguei-me sobre o que estaria
a fazer naquele local. Entretanto a mãe alcançou-me, arrastando as suas malas.
“Que estás a ver? Perguntou, exausta.
“Curiosidades.” Respondi, sem que ela
desse importância ao assunto.
“Olha, querido! Deve ser a casa da
Senhora Matilde. Pelas indicações que me deram, só pode ser aquela.” Disse entusiasmada,
apontando na direção de um edifício de dois pisos, no outro extremo da praça.
“Ainda bem que finalmente chegámos,
já não posso com uma gata pelo rabo.” Concluiu, com uma euforia refreada pelo
cansaço.
Olhei o casarão com desprezo e
mantive-me em silêncio. Um desprezo originado pela indiferença que me vinha
consumindo a alma, desde que abandonáramos África. Vi-me perdido, num mundo
reverso. Deitei os olhos ao céu e senti saudades do sol.
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