quarta-feira, 5 de agosto de 2015

OS QUATRO CHIFRES DO DEMÓNIO - CAP I


Chegámos à vila precisamente na hora do enterro. A tarde, naqueles primeiros dias de Março, deixava-se humedecer numa morrinha soturna e fria, quase gelada. O comboio foi refreando a marcha num guinchar de aço contra aço, até que, após um frémito brusco, estancou; como um cavalo exausto a aguardar o apear do cavaleiro. Enquanto retirava as malas da bagageira, olhei através dos vidros sujos das janelas e vi a guarita do velho apeadeiro, mostrando a sua decadência. O salitre trepava pelas paredes, comendo-lhes a cal e o barro, desenhando mapas de um mundo desconhecido. Sobre a parede lateral, um painel de azulejos amarelecidos, ostentava o nome da povoação, escrito em letras azuis, já num tom desmaiado: “Vale de Água”. Ao longo da gare, um muro de alvenaria alvacenta exibia os sinais da revolução, onde se destacava uma anafada figura, a fumar um charuto, de cartola na cabeça, e a ser decapitado por uma enorme foice (cruzada com um martelo), desenhados num vermelho sanguíneo. Por baixo da funesta figura consegui ler: “Fora com os capitalistas” e “Morte ao fascismo”.

Eramos os únicos passageiros a desembarcar. A guarda da passagem de nível mantinha-se de bandeirola vermelha no ar. Era uma silhueta estranha, com a forma de um pino de bowling, parecendo envolvida num invólucro transparente que a confundia com o ar pesado da tarde, e a tornava quase invisível. Atabalhoadamente, eu e minha mãe, descarregámos a bagagem sobre as lajetas do cais, dilaceradas pelo alastrar das ervas daninhas. A guarda baixou a bandeirola e o comboio deslizou sobre os carris, franqueando-nos a vista. Foi então que deparámos com aquele manto escuro de gente, barrado pela cancela de cantoneiras metálicas, pintadas a vermelho e branco. Uma urna parecia boiar sobre os olhares tristes, como se ninguém lhe pegasse, como se uma força estranha lhe não permitisse já algum contato com qualquer sinal de vida. A tenebrosa caixa negra, banhada num lustre preto e dourado, lançava lampejos púrpuros, num ritmo intercalado, acompanhando o piscar luminoso dos semáforos e o retinir das campainhas. Quando aquele monstro de ferro se sumiu na primeira curva da via-férrea, o pisca-pisca apagou-se e o tlim-tlim-tlim deixou de se ouvir. A cancela desimpediu a passagem e o funeral retomou a marcha, deslizando como uma sombra silenciosa, rente ao chão de asfalto húmido.

“Que estranho! Um funeral sem padre. Não reparaste?” Disse minha mãe, subitamente, apanhando-me desprevenido, ainda a olhar ao longe o gingar da última carruagem sobre o polido luzidio dos carris.

“Eu, não! Reparaste tu, porque estás viva. De certeza que o morto não se vai preocupar com tal pormenor.” Respondi.

“Querido, só não fico chocada porque sou tua mãe e conheço-te muito bem.”

Continuou ela, não digo indignada mas talvez algo inquisidora, dando-me a sensação de que se calou a matutar no assunto. De seguida, pegou nas malas e virou-me as costas, pondo-se ao caminho.

“Vamos, estou sem pachorra para o teu humor negro.”

Mais adiante parou, junto ao pino de bowling.

“Boa tarde. Por favor, sabe-me dizer onde fica a praça do Cruzeiro? Perguntou, afavelmente, parecendo-me que só lhe fez a pergunta para não parecer antipática.

Peguei também nas minhas coisas e segui-a. Em silêncio, a mulher apontou a bandeirola para o outro lado da linha, no sentido oposto ao que seguiu o funeral. A minha mãe (a partir de agora chamar-lhe-ei apenas mãe por achar desnecessário estar sempre a repetir que é minha) retomou o passo decidida. Partiu daquela terra, há muitos anos atrás, quando era criança, e ainda tinha uma vaga ideia do trajeto a seguir até à casa da viúva Matilde, onde iriamos ficar. Seguimos os dois por um caminho de pedra rolada, tornando-se penosa a caminhada, devido ao piso irregular e à imensa bagagem. Duas centenas de metros à frente parámos e a mãe voltou à carga:

“Sabes, meu querido, a partir de agora tens de ter alguma ponderação com certas coisas que dizes. Não é por mim, que te tolero tudo, mas estamos numa terra pequena, de gente católica, e, por vezes, podes ferir algumas suscetibilidades.”

“Deves estar a brincar comigo! Nem tu nem ninguém me irá impedir de dizer o que penso. E pelo que ouvi contar a censura já acabou há alguns anos atrás…”

Retorqui, levantando-me de cima da mala onde estava sentado e olhando á minha volta para disfarçar a irritação. As casas que ladeavam o caminho expunham-se na solidão amarga da tarde. Eram casas baixas e contíguas, com telhados cerâmicos enegrecidos pela invasão predadora dos fungos e líquenes; todas com fachadas caiadas num branco mortiço e com socos em tons de anil, carmim, por vezes ocre. Vi portas e janelas fechadas, e não senti vivalma. Pensei que, provavelmente, todos aqueles seres que as habitavam estariam no funeral, deixando nelas o mesmo pesar que carregaram consigo próprias. A morrinha tinha dado lugar a um chuvisco mais intenso e a humidade começava a moer a pele. Prosseguimos e retomei a conversa:

“…E também não fui eu que pedi para vir para este beco do mundo, medonho e triste! Já me sinto a definhar e ainda mal cheguei.”

“Até posso aceitar que reajas assim, mas sabes que não temos alternativa. És um jovem, a revolta e a irreverência ficam-te bem, mas, por agora, temos de aceitar esta oportunidade que nos dão.”

Continuou a mãe, já arquejada pelo peso das malas e pelas nossas conversas de sempre. Eu, sentindo-lhe o desânimo, tirei-lhe duas das malas, para a aliviar um pouco do esforço, e concluí:

“Vamos. Depois se vê. Sabes bem que só estou aqui por causa de ti!”

Finalmente chegámos à praça do Cruzeiro, que de praça só tinha o nome, pois não passava de um pequeno largo, onde, em pleno centro, se via uma tosca e retangular cruz de pedra. Sem grandes primores artísticos, erguia-se sobre um sopé quadrado, a formar três degraus; para onde atirei a carga que já me afadigava as costas, e onde me sentei enquanto esperava pela mãe, que se deixou atrasar. O antigo cruzeiro, pela sua simplicidade, nunca despertaria a atenção do turista mais curioso. No entanto algo incomum me fez reparar nele; sobre a superfície de pedra, já carcomida pelo tempo, a subir ao longo da sua coluna vertical, viam-se pequenas linhas pretas horizontais, que mais parecia estarmos perante uma régua graduada, mas com espaços irregulares. Levantei-me para ver com mais atenção. A seguir a cada uma das linhas havia a inscrição de quatro algarismos, correspondentes a anos diferentes. Reparei nos mais visíveis, que também eram os mais recentes; 1962, 1969, 1973, etc.; mas sem qualquer sequência ou correspondência entre eles. Mesmo no alto do cruzeiro (e convém dizer que este tinha, bem à vontade, cerca de quatro metros), ainda consegui ver o último traço, correspondente ao ano de 1979. Mas o mais curioso disto tudo foi quando contornei o cruzeiro; pendurado numa argola metálica, no lado oposto da coluna, havia uma coroa de flores já secas e esmorecidas. Mais abaixo, no sopé de pedra, uma lamparina de azeite irradiava uma luz trémula, resistindo ao fulgor da chuva.

Senti-me intrigado. Desde que chegara que só via sinais sinistros á minha volta e interroguei-me sobre o que estaria a fazer naquele local. Entretanto a mãe alcançou-me, arrastando as suas malas.

“Que estás a ver? Perguntou, exausta.

“Curiosidades.” Respondi, sem que ela desse importância ao assunto.

“Olha, querido! Deve ser a casa da Senhora Matilde. Pelas indicações que me deram, só pode ser aquela.” Disse entusiasmada, apontando na direção de um edifício de dois pisos, no outro extremo da praça.

“Ainda bem que finalmente chegámos, já não posso com uma gata pelo rabo.” Concluiu, com uma euforia refreada pelo cansaço.

Olhei o casarão com desprezo e mantive-me em silêncio. Um desprezo originado pela indiferença que me vinha consumindo a alma, desde que abandonáramos África. Vi-me perdido, num mundo reverso. Deitei os olhos ao céu e senti saudades do sol.

Nenhum comentário: