terça-feira, 22 de setembro de 2009

MENINO DI MUSSEQUE

Por estas bandas, terra de musseques feitos de pó e de chuva, já muito longe dum passado colonialista onde as referências portuguesas se vão perdendo, as crianças tratam o branco por “amigo”, julgando que é cubano, sem perceber que o facto de ser cubano, brasileiro ou português não significa, forçosamente, ter uma cor diferente da dele.
Quando, há dias atrás, me desloquei ao interior dum musseque, abeirou-se de mim um miúdo que me disse, assim sem mais nem menos, “ eh amigo você é bonito”, deixando-me, no mínimo, perplexo e desconcertado. Podia ter dito que eu tinha uns ténis giros ou que os meus óculos escuros, com que ele ambiciona um dia zungar(*) nas ruas do centro da cidade, eram fixes. Mas não foi assim ao contrário do que seria de esperar. O que terá levado uma criança de dez anos a elogiar assim uma pessoa totalmente desconhecida, já de meia-idade, sem qualquer razão aparente? Não sei se sou bonito ou feio nem acho que isso seja relevante aqui. Beleza não tem medida e nem depende de alturas e larguras. Beleza não é cor de pele nem sinal ao canto da boca. Beleza é, talvez, a forma como cada um enfrenta os seus sonhos.
Os musseques são os bairros periféricos da cidade, feitos com pequenas casas constituídas por quatro paredes de adobe e um telhado de chapas de zinco. Proliferaram no tempo da guerra civil com a fuga das gentes do interior. Trocaram as agruras dum isolamento sujeito aos caprichos duma guerrilha ideológica sem sentido pelo refúgio e pelo aconchego duma vida miserável mas mais segura. Agora, continuam a estender-se, irracionalmente, pelos fundos dos vales e encostas das montanhas circundantes, ao arrepio de qualquer critério urbano e ao sabor duma total precaridade humana.
Os meninos dos musseques vivem paredes meias com as cabras, os porcos e os cães raivosos. Mergulham nas águas contaminadas indiferentes às bactérias e aos parasitas que lhes ferram o sangue e os levam precocemente. Brincam descalços envoltos no pó da terra sépia e no meio de carcaças metálicas, muitas delas resíduos de guerra. Saltam imprudentes por entre pontas de metal aguçadas, ávidas por lhes rasgar a carne alimentada de fuba. Constroiem habilidosos carrinhos com arames e latas de refrigerante que depois comandam orgulhosamente com baraços desbravando caminho através duma selva plantada de detritos. Tornam-se mestres na arte de inventar com restos feitos de nada, acalentando o sonho de alcançar um mundo com outras cores.
Quando este miúdo se aproximou de mim e pronunciou aquelas palavras, estava, apenas, a ver o sinal de um mundo diferente e que ele acha mais belo do que o dele. Um mundo de que ele apenas houve falar e que, de vez enquanto, vê na televisão. Um mundo onde as crianças vão à escola de manhã e à tarde correm na relva, andam de bicicleta, jogam com consolas portáteis, brincam com carrinhos telecomandados e tem parques infantis com escorregas e baloiços. Um mundo onde os pais põem os filhos em escolas de futebol, oferecem “puppys” nos dias de aniversário e as suas casas têm quartos com janelas e paredes pintadas com cores diversas.
Um dia destes, quando encontrar novamente este menino, ou outro qualquer, vou ter de lhe dizer que a beleza não está em mim nem no meu mundo. Dir-lhe-ei, sim, que a verdadeira beleza está nele, na coragem com que brinca todos os dias e no brilho de um sorriso com que ilumina este seu mundo tão sombrio.
(*) Zungar significa passear




2 comentários:

Badiu di Fora disse...

Uma vez mais nos presenteias com mais um texto cheio de emotividade e sentimento.
Nós conseguimos perceber quão diferentes são estes mundos, e a forma de ab(c)ordar a vida depende apenas de nós...
Abraço.

VâniaBatista disse...

Dá para imaginar o que descreves nos texto, continua da gosto ler! beijo