domingo, 13 de setembro de 2009

D`ASSOMADA a N`DALATANDO (2)

Já vivi em quatro países deste mundo e passei por mais uns tantos, o que não significa nada numa era tão global e que, cada vez mais, gera seres desenraizados e solitários. A verdade é que tudo isto me deu uma sensibilidade especial o que me fez adquirir uma percepção própria em relação às incongruências do Criador.
Se me fosse permitido e se tivesse de adjectivar este nosso Criador, a primeira palavra que me ocorreriam seria “preguiça” e que, para além disto, o mundo foi criado sobre a mais completa indolência. E se, me for também concedida tal imodéstia e tamanha presunção, passarei a expor a minha teoria sobre a criação deste mundo.
Deus, como toda a gente sabe era filho único, e por isso bastante mimado e cheio de birras. Seu pai, desesperado, sem saber o que fazer para lhe ocupar o tempo, naquele tempo onde não havia creches nem amas, resolveu dar-lhe uma tarefa para o entreter. Sentou-o no meio do jardim, colocou-lhe á frente, um monte de terra, um balde, uma pá e uns quantos utensílios que achou adequados e disse-lhe: “fica aí e entretêm-te a criar o Mundo que eu tenho mais que fazer”.
Ora, como é óbvio, Deus marimbou-se para aquilo tudo. Espremeu umas tantas migalhas daqueles detritos que deixou cair por entre os dedos e deu origem a Cabo Verde. Com o pé, talvez o esquerdo, ajeitou uma porção daquela nojenta massa térrea e lá conseguiu configurar este país a que resolvemos chamar Portugal. Com tudo o resto, ainda se atreveu dar umas pazadas completamente aleatórias e desajeitadas, donde surgiu África e, no caso desta história, mais concretamente Angola. Depois, num acto de profundo desdém e desinteresse, mijou naquilo tudo, deixando-nos num estado de total abandono, do qual nunca mais quis saber, refastelando-se eternamente no seu altar de divindade.
Não quero, com estas considerações teológicas, desculpar nem ilibar seja o que for relativamente à desgraça humana. Até porque não sou muito dado a questões metafísicas nem muito menos a questões de fé, que nos permitem levar uma vida despreocupada e isenta. Desejo, apenas, chamar a atenção de que existem mundos muito menos protegidos e, talvez, desgraçadamente esquecidos.
Ainda consigo vislumbrar em mim o sentimento de quando pisei a primeira vez a Ilha do Sal em Cabo Verde e, depois, a Cidade da Praia. Nunca tinha estado em terras africanas e o calor que se apoderou de mim, na altura, foi inesquecível. Até essa altura, da minha vida, nunca me tinha sentido tão só e ao mesmo tempo tão próximo de tudo quanto é a nossa origem. O cheiro diferente, o suspiro da terra, a paisagem cinzenta e pobre mas ao mesmo tempo forte, quente e intrínseca á espécie humana, própria dum povo em que nada lhes foi concedido. Apenas mar e terra a erguer-se a Deus num acto de penitência e resignação.
Quando se passa junto ao Pico da Antónia, a caminho da Assomada, apenas nos apetece agradecer ao criador pela sua preguiça e ao mesmo tempo pelo seu desleixo que permitiu deixar as coisas tão naturais e tão belas. Parece que a terra se ergue do mar a bradar e a agradecer a Deus por a ter criado.
Quando penso nas noitadas carregadas de álcool, cheias de conversas banais sobre o desejo por mulheres predispostas na ânsia de sexo fácil ou de ultrapassar recordes de velocidade entre a Cidade da Praia e Assomada, às tantas da manhã, entre curvas e contra curvas, sinto-me insignificante perante tanta estupidez e loucura. Quando penso nas manhãs cobertas de lama pelas chuvadas da noite anterior, e nas viagens de ressaca até ao Tarrafal, através da Serra Malagueta, sobre o olhar inquisitório da Ilha do Fogo, deixo-me levar pela “sôdade” desta terra carregada de enigmas. Vivi nesta terra dois anos, é um país pelo qual tenho uma enorme simpatia, onde tenho bons amigos e onde terei, sempre, um enorme prazer em regressar. De passagem é claro.
Mas não se pense, com isto, que Cabo Verde é apenas terra de saudade. Continuam a ser as mulheres e as crianças a trabalhar, no melhor e no pior, enquanto os homens não fazem nenhum. Continua a existir miséria e contradições. Mas enquanto Cabo Verde é uma terra de gente sentida, feita de migalhas e de restos, só porque Deus resolveu brincar com coisas sérias, Angola, ao contrário, é uma terra em que tudo lhe foi concedido e em que tudo prolifera. Angola é uma terra de improvisos e oportunismos. Foi feita com algumas pazadas cheias de tudo, o que lhe deu força e ao mesmo tempo uma grande dose de arrogância. Só quem viveu de perto com as gentes do interior da Ilha de Santiago e agora vive com esta gente do interior, em Angola, consegue distinguir estas diferenças.
Quando entrei pela primeira vez em N`Dalatando senti-me perdido e desorientado. Depois, com o hábito consegui ir absorvendo e entranhando em mim o meio que me rodeava. Tudo, no ser humano, é uma questão de hábito e adaptação. Talvez a experiência em Cabo Verde tenha tornado a vinda para N`Dalatando mais fácil para mim.
No entanto, tudo foi diferente para pior. O odor da miséria humana ultrapassou tudo quanto se pode imaginar. Habituamo-nos a ver as crianças a brincar no meio de tal imundice e no seio de tamanha indiferença, sem que se possa fazer muito por isso. Transformamo-nos em seres alheados, com total ausência de sensibilidade e completamente resignados.
A indiferença, desta gente, á condições naturais desta terra e a passividade perante tudo quanto ela de bom lhes possa dar faz-nos sentir impotentes e cada vez mais desiludidos. O olhar métrico e ressentido, que nos fazem sentir, a toda a hora, como se uns centímetros de alma fizessem a diferença entre o branco e o preto, provoca-nos, uma cada vez maior, desorientação.
Nesta terra, tudo o que é natural é imponente. A noção das dimensões torna-se completamente diferente e dá-nos uma sensação das distâncias muito para além de tudo o que a nossa imaginação consegue alcançar. Não sei se estarei a exagerar com isto tudo. É que, fazer quarenta kilómetros na Ilha de Santiago, da Praia á Assomada, parece-nos o mesmo que fazer, aqui, duzentos de N`dalatando a Malange.
É um saltinho, diz-se por aqui.Quem me dera que fosse um saltinho daqui até aí.

3 comentários:

Miscelaneas disse...

Hola hermao. Saludos desde Madrid.
Buen blog.

Unknown disse...

Antes de mais fico lisonjeado por ter sido o meu blog que te tenha lançado e incentivado a escrever. Parabéns pelos post's, estão geniais, excepto aquela parte em que falas mal dos filhos únicos, dessa não gostei!
Quando (d)escreves as coisas que passaste aqui em Cabo Verde, entendo que o nosso sentimento é idêntico. As noites, as viagens, a indiferença, os enigmas. Como eu te compreendo.
Diz a música: "Volta pa nos terra caoberdi, volta pa terra ki é di nós".
Foste embora há quase um ano, mas os teus amigos ainda esperam por ti.
ABRAÇO.

Ana disse...

Gostei, pela forma que escreves deu para relembrar a minha terra.
Ficamos a espera de mais.