Os meus olhos abriram-se,
sobressaltados. Uma mão macia pousou no meu ombro, despertando-me o corpo, meio
empedernido. "Senhor! Sente-se mal?", alguém perguntou. "Precisa
de alguma coisa? Sentado aí, com o rabo nesse banco frio, vai acabar por
gelar." Um vulto sombrio tinha-se debruçado sobre mim, despejando um bafo,
morno e azedado. Murmurei um leve agradecimento e respondi que não, que estava
tudo bem. A mulher, pequena e larga, afastou-se vagarosamente, envergando uma
bata cinzenta que lhe dava pelos tornozelos e uma bandeirola vermelha debaixo
do braço. "Devo ter-me deixado dormir!", pensei. Na verdade, alguns
minutos antes, depois de me ter apeado do comboio, decidi encostar-me um pouco
no banco corrido do apeadeiro e, por breves momentos, fechei os olhos. A viagem
tinha sido longa e, apesar do conforto do comboio e um sono leve me tenha
embalado, sentia-me cansado. Aliás, não era propriamente um cansaço, era mais
uma modorra, provocada pela inquietude que me consumiu durante toda a viagem,
como se eu fosse uma criança, ansiosa por chegar ao seu destino. Tinha cerca de
doze anos quando os meus pais me levaram dali, passaram-se quase quatro décadas,
e certamente tudo o que me ligava àquela terra ter-se-ia dissipado entretanto.
A minha família mais chegada também partira há muito, restando-me apenas um tio
afastado e alguns amigos de infância, e com certeza já não nos reconheceríamos,
se nos víssemos. Foi esse meu tio que me contactou, há alguns dias, por causa
de um assunto que estaria por resolver, relacionado com uma pequena herança,
razão pela qual me vi obrigado a fazer esta viagem.
Estávamos em Março, num dia soturno, e a tarde insistia na
mesma frieza da manhã. Deixei de ver a guarda da passagem de nível, que entrara
dentro de um pequeno edifício de alvenaria caiada, situado no extremo do
apeadeiro. De ambos os lados da linha férrea, viam-se os sinais luminosos
apagados, e as cancelas metálicas abertas, pintadas de vermelho e branco. Os
poucos passageiros que desembarcaram comigo já tinham debandado, como ratos
regressados às tocas. A povoação recolhia-se no silêncio, entre cada paragem de
comboio. Escutava-se apenas um leve burburinho vindo do pequeno café, à saída
do apeadeiro. Ergui-me do banco frio de pedra e peguei na mala, com a intenção
de procurar a casa de meu tio. Tinha prometido a mim mesmo que, assim que
chegasse, iria de imediato tratar do que me tinha levado até ali e que não me
levaria por certos apelos da memória. Mas não, primeiro, com a desculpa do
cansaço, deixei-me ficar sentado naquele banco e, agora, por mais que os meus
pés se quisessem mexer, parecia que algo me colava ao chão, como se uma matéria
densa, metálica, tivesse subitamente preenchido todos os interstícios, todas as
intermitências do meu corpo. A memória é uma crosta que se vai agarrando a nós,
que só o tempo faz amadurecer até cair por si própria, tal como a casca do
pinheiro se desliga um dia do seu tronco. Uma crosta que, ao longo de toda a
nossa vida, provoca um prurido, e, se não a soubermos cuidar, se a tentarmos
arrancar antes do seu tempo, sem estarmos preparados para tal, o risco da dor
será sempre maior que o do alívio. Tinham passado quase 40 anos desde que
estivera ali pela última vez, desde aquele fatídico domingo de Páscoa que me
destroçou a existência e me fez partir, vergado pelo peso das minhas próprias
recordações. E foram, talvez, essas recordações que me fizeram permanecer sobre
a laje cimentada do cais, olhando desassossegado à minha volta, não resistindo
à tentação de fincar as unhas naquele prurido, cada vez mais intenso, mesmo que
isso me pudesse deixar em carne viva.
O velho telheiro de madeira, cinzenta e estiolada, tinha
dado lugar a uma construção de alvenaria branca. Sobre as paredes, sujas e
descaliçadas, para além do placar com
os horários dos comboios, viam-se alguns vestígios de cartazes eleitorais, um
panfleto a anunciar as festas da freguesia e uns indecifráveis grafites, já quase sem cor. No lugar da
antiga tábua, pintada a branco e com o nome da povoação em letras pretas e
redondas, via-se agora um painel de azulejo empalidecido, orlado a azul e
letras muito rectangulares, também azuis. O muro de pedra, paralelo à linha, que
separava o apeadeiro do jardim, era agora um gradeamento metálico. O jardim
onde existia uma palmeira velha, um canteiro de rosas brancas e as
glória-da-manhã se abriam ao raiar do dia, passara a parque de estacionamento.
Até mesmo o cheiro intenso do creosoto, vindo das sulipas de madeira, ou o
aroma fresco das heras que trepavam o muro, tinham desaparecido, restando somente
um incaracterístico odor a cimento e a cal. Aparentemente, nada restara do
passado, e eu encontrava-me num mundo inverso desse passado.
Só que nem tudo mudara; olhando mais atentamente, reparei
que o banco, onde me sentara anteriormente, permanecia igual; corrido, robusto
e sólido, com o assento e as costas em pedra. Foi naquele momento que a minha
memória se avivou e me dirigi a uma das extremidades do banco, debruçando-me
sobre ele. Estendi o braço, com os dedos trementes tacteei suavemente a
superfície polida do calcário, tal como um cego quando lê a página de um livro,
e lá estava, o único vestígio de um passado longínquo. Apesar da erosão do
tempo, apesar do desgaste provocado pelos inúmeros corpos passageiros, ainda se
podia sentir aquele coração sulcado na pedra, e, dentro dele, aqueles dois
nomes: Mel e Romeu. Observei com atenção, durante mais algum tempo; era mesmo o
meu nome. Sentei-me novamente e deixei-me ficar, com o corpo mais inerte do que
o banco, e com um olhar profundamente desconcertado. Rodei a cabeça para a
minha esquerda; um metro ao meu lado estava Tomé e entre nós os dois estava
Mel. O mundo, à minha volta, recuava quarenta anos.
Chamava-se Amélia mas tratávamo-la por Mel, não só pelo
nome, mas porque toda ela se assemelhava a mel. Tinha cabelos cor de âmbar e os
olhos, embora fossem castanho esverdeados, eram tão doces que, sempre que nos
fitava, derretíamo-nos mais do que o próprio mel. Tomé era o meu melhor amigo e
a vida um sem o outro não nos fazia o menor sentido. Nascemos e crescemos
juntos, partilhámos a mesma escola e os mesmos professores, vivemos as mesmas
aventuras, tivemos as mesmas angústias e as mesmas certezas, e acabámos ambos
por amar a mesma pessoa pela primeira vez. Invariavelmente, todos os domingos,
depois da missa, corríamos disparados até ao banco do apeadeiro e ficávamos ali,
lado a lado, à espera que Mel chegasse e se sentasse no meio dos dois. Depois
entretinhamo-nos a contar as carruagens dos infindáveis comboios de mercadorias,
ou a observar, embevecidos, a passagem do sud-express
a caminho de Paris, e a imaginar como seria ser estrangeiro e viajar naqueles
compartimentos, que, segundo ouvíamos dizer, eram maiores e mais confortáveis do
que as nossas próprias casas. Mesmo nos dias de semana, depois da escola,
costumávamos ficar por ali a observar o movimento de quem vai e de quem chega: dos
estudantes e dos empregados do comércio a caminho de Coimbra; das peixeiras
vindas da Figueira; das vendedoras de queijadas, gordas e fala-barato; dos
ferroviários a regressar do Entroncamento, fardados que nem uma castanha, boné
enfiado até ao pescoço e lancheira de couro numa das mãos; dos carros de bois
carregados de palha de milho, a aguardarem que a passagem de nível se abrisse. Aquele
apeadeiro passou a ser o centro do nosso universo. Era ali que a terra terminava
e começava o resto da nossa existência. Era ali o início de todos os nossos
sonhos.
"Qual é que é mais rica, Lisboa ou o Porto?",
perguntava Tomé, enquanto eu e Mel nos mantínhamos calados. "É o Porto
porque tem um rio de ouro, enquanto Lisboa só tem um braço de prata",
respondia Tomé a si mesmo, lançando, de seguida, duas fortes gargalhadas. "E
sabes que Lisboa tem um comboio que anda por baixo da terra, como uma
toupeira?", retorquia eu. "E como sabes tu tal coisa? Por acaso já lá
estiveste?", apressava-se Tomé a perguntar. "Claro que já lá estive;
quando meu tio embarcou para o ultramar e nos fomos despedir dele. Lembro-me
perfeitamente daquele barco gigante, carregado de tropas a acenarem-nos com
lenços brancos, enquanto desaparecia por baixo da enorme ponte. Um dia, também
hei-de viajar naquele barco. É um barco que vai a qualquer parte do mundo",
dizia eu, com um certo ar triunfante. Mel olhava-me com alguma admiração, mas não
se pronunciava, limitando-se a rodar a cabeça, conforme eu e Tomé íamos falando.
"Um dia destes também vamos viajar, eu e a Mel. Vou levá-la ao Porto.
Gosto mais do Porto. Vamos passear no rio Douro e depois vamos ver a Santa
Maria da Adelaide", exclamava Tomé, enquanto fitava Mel, com os olhos
negros e brilhantes, sob as duas sobrancelhas espessas e muito juntas, na
espectativa de que ela rejubilasse com tamanha revelação. "Tens sonhos
muito pequenos", dizia eu. "Quem é que leva a namorada a ver uma
morta dentro dum caixão, que mais parece uma videira seca?" "Namorada?
Namorada de quem?", suspirava Mel, num tom inocente. Tomé não acusava a
desfeita e reagia de imediato, demonstrando a sua paixão por Mel, apressando-se
a dizer, alto e em bom som, que a amava mais do que a todas as coisas, que sem
ela preferia morrer. Depois, deslocava-se ao jardim, trazia uma rosa branca e
oferecia-a a Mel, prostrando-se de joelhos em frente a ela. Mel colocava a rosa
nos cabelos e sorria com aqueles lábios cheios e curvilíneos, repuxados para
fora, como se tentasse soprar o sorriso para longe. Por vezes olhava-me de
soslaio, disfarçadamente, com o seu ar sempre cândido e ambas as mãos espalmadas
sobre o assento do banco, enquanto abanava as pernas nuas e muito finas. A
partir de determinada altura, tanto para mim como para Tomé, tudo parecia girar
em redor de Mel, tornando-se, até certo ponto, uma obsessão. Mas enquanto ele
fazia questão de extravasar a sua felicidade, eu remetia-me ao silêncio,
levado, por um lado, pela minha timidez e, por outro, pelo medo de magoar Tomé.
Para ele, eu era o amigo em quem podia confiar, a quem podia confessar sem
qualquer receio, sem o mínimo vislumbre de ameaça, todo o amor que sentia por
Mel. Eu ouvia-o, mantendo-me impenetrável, fechando-me sobre mim próprio como um
bicho de conta, a tentar conter a amargura por não haver outra Mel igualzinha àquela.
O mundo faz réplicas de tanta coisa, e tinha logo que existir apenas uma, uma
única e inigualável Mel. Não me passava pela cabeça, nem tão pouco pela de Tomé,
que a felicidade só dura enquanto não chega a incerteza.
Os pensamentos em que me tinha afundado, foram subitamente
interrompidos pelo toque desenfreado das campainhas e pelo intermitente pisca-pisca
dos sinais luminosos. A guarda da passagem de nível apressou-se a fechar as
cancelas, desta vez sem a bandeirola debaixo do braço. Percebi que iria passar
um comboio sem paragem. Olhei mais uma vez aquele coração gravado na pedra,
abraçando o meu nome e o de Mel, e recuei mais uma vez até àquele domingo de Páscoa.
Tomé já me aguardava, completamente louco de raiva e um olhar alucinado como
nunca lhe tinha visto antes. "Como foste capaz? Como me pudeste fazer isto?",
berrava ele. "Julgava-te o meu melhor amigo!", continuou, atirando-se
a mim, esmurrando-me o peito com ambos os punhos cerrados. "Não percebo ao
que te referes!", ripostei, perplexo, enquanto me tentava defender,
agarrando-lhe os punhos. "Afinal, não passas de um cobarde! Se a amas
porque não o dizes? Porque não o assumes tal como eu, em vez de te acobardares?",
insistiu. "Porque o fizeste? Porque tinhas de gravar o teu nome por cima
do meu?", concluiu, enquanto me fulminava com um olhar inquisidor. Assim
que me libertei-me de Tomé, virei-me na direcção do velho abrigo de madeira, procurando
uma explicação, e foi quando me lembrei do dia em que ele desenhou aquele
coração nas costas do banco. Levou um dia inteiro a fazê-lo, com o entusiasmo e
a ingenuidade de uma verdadeira paixão, justamente no dia do seu aniversário,
recorrendo ao bico do canivete que eu lhe tinha oferecido como prenda de anos. "Deves
estar a fazer confusão, Tomé. Não fui eu...", ainda disse, voltando-me
novamente para ele. Só que, quando me virei, já não o vi, Tomé desaparecera
inesperadamente da minha vista.
Foi então que ouvi aquele grito carregado de agonia,
enquanto o comboio sem paragem passava, fulminante, deixando atrás de si um
buraco negro, como se arrastasse, com toda a sua força de sucção, a existência
de tudo por quanto passava. O pressentimento de que algo terrível acontecera
tolheu-me os movimentos. A angústia por já não ver Tomé, por ele poder não estar
vivo, a esmurrar-me ainda o peito, preenchera, de repente, todo o vazio que a passagem
do comboio provocara. O odor do creosoto tinha-se transformado em odor a sangue
e vísceras. Um odor que começou a trepar pelas paredes do cais, vindo até mim,
tão intenso e corrosivo que me devorava os ossos, dilacerando-me por fora e por
dentro, como se tivesse sido eu a ser trucidado pelas garras metálicas da
locomotiva. Fragmentos de carne humana espalhavam-se ao longo da linha férrea, ainda
pulsantes, como se, agora, fossem coisas diferentes, corpos de carne viva a
agonizarem antes do estertor final. Então, agachei-me à beira do cais, dobrando-me
sobre mim próprio, e soltei um guincho de dor. Naquele momento era só eu e a
minha dor. Eu era a própria dor. Já não ouvi os gritos de Mel que se aproximava
de mim a correr. Já não ouvi os gritos que o mundo lançou sobre a terra
inteira.
"Senhor! Senhor! Tenha cuidado que o comboio rápido
vai passar. Afaste-se da beira do cais", escutei, subitamente. Recuei dois
passos e olhei. A guarda da passagem de nível gesticulava na minha direcção,
dois braços gordos e muito curtos. Peguei na mala, que se encontrava sobre o
banco corrido de pedra, e dirigi-me para a saída do apeadeiro. Junto à passagem
de nível, aguardei que o comboio rápido passasse, até se tornar somente um
ponto oscilante a sumir-se no infinito. Olhei ao longo da linha férrea, que não
era mais do que um tapete negro e triangular, sobre o qual se afunilavam duas
linhas muito rectas e luzidias. Então uma nesga de sol perfurou as nuvens,
socando-me os olhos como um punho cerrado, obrigando-me a fechá-los. Foi quando
os abri, logo de seguida, que me pareceu ver Tomé. Era o seu busto entre os dois
carris; apenas se via o seu busto, como se o resto do seu corpo, do peito para
baixo, se tivesse cravado por entre as pedras do balastro. Tomé fitava-me. O
seu rosto era de pedra azulada e tinha a cor da carne morta. Os olhos, raiados
de sangue, estavam tristes e esvaziados.
Do apeadeiro para o centro da povoação subia-se por uma
estrada de asfalto, estreita e ladeada, de ambos os lados, por pequenas casas
caiadas, todas com uma porta a meio e uma janela de cada lado. Ao fundo, na
parte mais alta da estrada, estendia-se um muro alto, também caiado, por trás
do qual se viam algumas pontas de ciprestes, o que me levou a pensar que se
tratava do cemitério. A casa de meu tio, segundo me explicaram no café, à saída
da passagem de nível, ficava naquela direcção e era para lá que eu me dirigia.
A noite aproximava-se e, embora o meu tio me tenha oferecido estadia, haveria
que chegar o mais depressa possível, pois, por ali, segundo ele me dissera, era
costume ir-se para a cama cedo. Tinha perdido demasiado tempo no apeadeiro e,
provavelmente, o meu tio já se estaria a interrogar pelo meu atraso. Embora a
minha idade já não me permitisse grandes correrias, estuguei o passo até chegar
ao cimo da subida, onde terminavam as casas e se abria um pequeno largo, no
qual me deparei com um cruzeiro de pedra ao meio, e de onde saíam duas outras
estradas, estas calcetadas em pedra de granito irregular; numa via-se o muro e
o portão do cemitério, na outra, ao fundo, via-se a torre da igreja. Como até
ali não me tinha cruzado com ninguém, decidi entrar numa pequena loja, para
perguntar novamente onde era a casa de meu tio, cuja porta dava para o largo e
onde se viam alguns jornais e revistas, de um lado, e cestos de flores do
outro. Subi os dois degraus de pedra e entrei. Uma mulher, de costas para mim,
colocava maços de tabaco nas estantes, por trás do pequeno balcão. "Boa
tarde", disse eu. A mulher retribuiu, mantendo-se mais alguns segundos de
costas, enquanto arrumava minuciosamente o último maço, parecendo não ter
pressa. "Deseja alguma
coisa?", perguntou, virando-se para mim. Durante algum tempo olhámo-nos
mutuamente, sem nada dizermos. Depois, mostrando-se curiosa, talvez pelo facto de
eu a fitar intensamente, continuou: "Não é daqui, pois não? Ou
conhecemo-nos de algum lado?". "És tu, Mel?", balbuciei,
tentando sair do pasmo onde me enfiara nos últimos momentos. "Mel? Deve
estar a fazer confusão. O meu nome é Amélia", ripostou. "Mel, sou eu,
o Romeu. Não me reconheces?", insisti, parecendo não a ouvir. Foi então
que algo dentro dela pareceu despertar, ao ouvir o meu nome, e lançou um
sorriso. As recordações nunca morrem dentro de nós, apenas entram num sono
profundo, numa espécie de estado de coma que pode durar vidas inteiras, mas,
muitas vezes, basta um clique, um pequeno sinal, um simples nome, para que elas
acordem e se tornem vivas. Se houve algum momento em que eu tive alguma certeza
na vida foi aquele. Reconhecera-a de imediato. O seu cabelo já não tinha a cor
de âmbar, o tempo encarregara-se de o grisar. O seu corpo amadurecera, perdendo
a candura, a graça de menina. Os seus lábios eram menos cheios, mas continuavam
curvilíneos e a soprar os sorrisos para longe. O sorriso que ela acabara de lançar
não me deixara qualquer dúvida. Conversámos durante algum tempo. Falámos,
essencialmente, da nossa vida depois daquele dia. Daí para trás, nada existira
para nós. Mel vivera a sua vida toda naquela terra, nunca casara e não tinha
filhos. Tornara-se professora primária, cantava no coro da igreja e,
recentemente, abrira aquela pequena loja. Por vezes fazia algumas viagens
dentro do país; ia a Lisboa e ao Porto, raramente ao Algarve e, mais
frequentemente, a Nossa Senhora de Fátima, ao Bom Jesus e até a Santa Maria da
Adelaide. Eu contei-lhe que, depois de ter crescido em Lisboa, tinha andado
largos anos por África e por outras partes do mundo, vivido na Holanda, onde
casara e tivera dois filhos, tendo regressado a Lisboa há cerca de dez anos,
onde vivia actualmente. Contei-lhe também sobre o motivo que me tinha feito
viajar até ali e que teria de voltar para Lisboa já no dia seguinte. Por fim, disse-lhe,
já em jeito de despedida, que tencionava, antes de me ir embora, fazer uma
visita ao cemitério, e perguntei-lhe se ela não me venderia um ramo de flores,
que eu pudesse levar. Houve um silêncio entre nós, até que ela se deslocou aos
cestos de flores que estavam à entrada e compôs um pequeno ramo de rosas
brancas. "Toma, são estas que eu levo sempre!" Peguei no ramo de
rosas e saí. Ela seguiu-me, desceu os degraus e ficou ali, de pé a olhar-me,
enquanto eu me afastava. "Sabes... Fui eu...", ainda ouvi ela dizer,
com uma voz sumida e trémula. "Fui eu que gravei o teu nome!".
Continuei em frente sem me virar, sem dizer mais nada. Há
palavras que fazem mais sentido quando se perdem no silêncio. Talvez, há quarenta
anos, houvesse palavras para dizer um ao outro. Teria sido nessa altura que eu deveria
ter pegado nas palavras e lhas deveria ter dito, tal como se lhe oferecesse uma
rosa branca; mas não, não o fiz e, agora, já nada mais restava. Agora, por mais
palavras que houvesse, cairiam sempre naquela espécie de buraco negro, que um
comboio rápido provoca ao passar.
Com
o ramo de rosas numa das mãos e a mala de viagem na outra, entrei dentro do
cemitério, através de um sólido portão de ferro forjado, que guinchou assim que
o empurrei. A sepultura de Tomé ficava logo à entrada, junto à sebe que ladeava
a ala central e dum cedro que lhe faria sombra, caso estivéssemos num dia de
sol. Sobre o monte de terra, praticamente raso e informe, via-se uma lamparina
de azeite apagada, uma jarra de flores já murchas e a lápide de pedra, negra e
velha. As inscrições da lápide eram totalmente ilegíveis e o retrato a preto e
branco de Tomé, dentro de uma moldura oval, estava quase irreconhecível.
Retirei as flores velhas da jarra e coloquei o ramo de rosas brancas. De pé,
com as mãos cruzadas sobre o meu baixo ventre e cabeça levemente reclinada, deixei-me
ficar durante algum tempo aos pés da sepultura. Tomé fitava-me, mas os seus
olhos já não eram tristes e vazios. O seu rosto já não era uma pedra fria e
azulada. Pelo contrário, por trás daquele retrato, desbotado e puído pelas
dezenas de anos, o seu rosto sorria, parecendo-me, até, ver nele um certo vislumbre
de felicidade. Pensei no meu tio, que já deveria estar preocupado por eu ainda não
ter chegado, e na viagem que teria de fazer no dia seguinte. Seria, certamente,
uma viagem de regresso tranquila. A inquietude, que me perseguia há algum
tempo, deixara de me incomodar. Aquele prurido, que há muito sentia debaixo da
pele, de repente, parecia ter aliviado.